Gina Pereira, in Jornal de Notícias
Um livro com depoimentos de 35 mulheres portuguesas que vivem com VIH-Sida é lançado esta tarde, Dia Mundial da Luta contra a Sida, na livraria do cinema King, em Lisboa. "Poderia ser eu" é uma tentativa de ajudar a diminuir o estigma com que estas mulheres vivem.
"Sinto-me culpada de não ter sido esperta, de não ter pensado, sinto-me culpada por ter confiado. Mas quem ama confia e eu confiei mal". Ana (nome fictício), 49 anos, soube que estava infectada com VIH em 1997, 22 dias depois de ter sido mãe. "Foi como um duche de água fria. Pensei que ia morrer dentro de poucos dias".
Supõe que a infecção ocorreu durante a gravidez, num período conturbado de separações e reconciliações com o pai do seu filho, um homem por quem se apaixonou após um casamento falhado de 16 anos e três filhos. E a quem não consegue perdoar pela "morte" que lhe deu em vida.
Ana é uma das 35 mulheres, com idades entre os 25 e os 64 anos, que - sempre sob anonimato - acederam a contar em livro a sua história de infecção com o VIH-sida. Os seus dramas, os seus medos, as suas vitórias e a discriminação a que são sujeitas, como quando encontram médicos que se recusam a atendê-las ou são tratadas como "sidosas" nos hospitais. "Mulheres que vestem a burka da vergonha, do medo ou culpa e que se isolam no seu silêncio", lê-se no prefácio do livro "Poderia ser eu, biografias de mulheres que (con)vivem com o VIH", que é lançado esta tarde na livraria do cinema King, em Lisboa.
Isabel Nunes, coordenadora do livro, fundadora e presidente da associação SERES (que trabalha com mulheres infectadas e na área da prevenção do VIH) diz que "existe ainda um problema de silêncio que precisa de ser trabalhado" e que, por isso, é tão difícil juntar estas mulheres, nem que seja para partilhar experiências. Este livro é uma achega "para que um dia não exista medo de dizer "eu tenho VIH"". E para que se perceba que, afinal, "este é um risco a que praticamente toda a gente está sujeita".
Entre as mulheres que ousaram revelar a sua história há quem tenha sido infectada em África, durante uma intervenção cirúrgica, mas a maioria são mulheres contaminadas pelos maridos ou companheiros que não sabiam ou não tiveram coragem de lhes assumir que viviam com VIH. Muitas vezes só descobrem quando os maridos são internados ou quando se preparam para ser mães e, às vezes, só após o parto.
Rita, 31 anos, descobriu que estava infectada durante a gravidez, numas análises de rotina. Foi o marido, infectado há 15 anos, que a contaminou, sem nunca lhe ter falado que era portador do vírus. "Ele deveria ter-me dito, não tinha o direito de não me dar escolha". Foi um "choque" quando soube que estava infectada. Não conseguiu desfrutar da gravidez, "vivida num constante sofrimento, com muitos medos e incertezas", mas o que mais lhe custou foi não poder amamentar a sua filha, que nasceu seronegativa.
Ainda assim, Rita continuou casada com o marido, com quem tenta viver "o melhor possível" e pondera agora ter mais um filho, para poder gozar a gravidez. "Mas nunca o vou perdoar, embora o ame", diz, confessando que "não existe um único dia que não pense no VIH". Só o marido sabe da doença e o seu maior medo é que alguém descubra.
"Ainda está muito incutido que esta doença se relaciona com os grupos de risco, com os homossexuais (como no início da pandemia) e cada vez mais se descobrem casos entre as pessoas heterossexuais. Não é uma questão de grupos, é uma questão de comportamentos", diz Rita, opinião reforçada porIsabel Nunes, da SERES. "Já não existem grupos de risco. São comportamentos e contextos", diz, lamentando que em Portugal se continue a pôr o foco nos homens que têm sexo com outros homens e se descurem os heterossexuais, a que corresponderam 60% das infecções registadas no ano passado.
Muitas das mulheres que se revelam no livro não entendem como é que ainda hoje as pessoas correm riscos e são tão renitentes ao uso do preservativo. "Infelizmente ainda não há uma consciência de que é algo que pode acontecer a qualquer um. Assim como o uso do preservativo está longe de ser aceite no que toca a relações de compromisso", diz Patrícia, 38 anos, que descobriu que estava infectada quando foi fazer análises para engravidar. Acha que o marido não sabia que estava infectado quando casou e não acredita que lhe tenha sido infiel.
A "resistência feroz" ao uso do preservativo é algo que choca Maria, 58 anos, diagnosticada em 1991, depois de uma operação cirúrgica em África. Recebeu a notícia como uma sentença de morte. Chorou, isolou-se, comeu e bebeu "estupidamente para ficar gorda e feia". Não queria que nenhum homem se interessasse por ela. Nos relacionamentos que teve foi sempre Maria a impor o uso do preservativo.
"Tanta irresponsabilidade da parte de homens adultos quase dá vontade de rir", diz, admitindo que a assustam bem mais as pessoas que não sabem ainda que estão infectadas e que "por total irresponsabilidade correm o risco de fazer dos outros gente igual a nós".
Em Portugal, dos cerca de 39 mil casos de infecção VIH/SIDA registados desde 1983 17% são mulheres e elas correspondem a cerca de um terço (mais de seis mil) dos portadores assintomáticos do vírus. No ano passado, confirmou-se uma alteração da tendência inicial da epidemia de sida no país: verificou-se um aumento proporcional do número de casos de transmissão heterossexual (59,4% do total de casos) e um menor número de casos associados à toxicodependência (25,1%).