21.1.16

“Quer o Estado que eu usufrua da pensão de alimentos da minha filha?”

Ana Cristina Pereira ,Andreia Sanches, in "Público"

“Quer o Estado que eu usufrua da pensão de alimentos da minha filha?” Paula Rodrigues com de boca aberta quando viu o valor. Seria engano? Já se afligia para se organizar com 231,60 euros de rendimento social de inserção (RSI); como é que ia fazer com 111,60? Foi à Segurança Social. Explicaram-lhe que a pensão de alimentos faz parte do rendimento do agregado familiar e por isso mesmo o seu valor é deduzido, na íntegra, no RSI.

Apresentou uma reclamação formal à directora do Instituto da Segurança Social anteontem. E, ontem, outra à Provedoria de Justiça. “Eu sou uma pessoa íntegra. A pensão de alimentos é exclusivamente para a minha ? lha. Não lhe posso negar o que o pai lhe dá.” Já lhe explicaram que estão a aplicar o Decreto-Lei n.º 133/2012, aprovado pelo Governo PSD/PP. “Não acho que seja justo”, diz. “Onde é que ? ca o superior interesse da criança quando há legislação que determina que a pensão de alimentos, que devia ser exclusivamente para a criança, também seja para a mãe?” O tema do debate de hoje no Parlamento é a reposição das prestações sociais e o combate à pobreza.

O “Pacote Rendimento”, aprovado pelo Governo em 17 de Dezembro, trouxe o aumento dos três primeiros escalões do abono, a reposição do valor de referência do complemento solidário para idosos, o retorno das velhas escalas de equivalência do RSI, mas nada contém sobre condições de recurso.
Paula Rodrigues vasculhou a Internet à procura de respostas. Encontrou um parecer do Observatório de Direitos Humanos sobre uma mulher, vítima de violência doméstica, a quem foi atribuído RSI depois de fugir de casa com os ? lhos e retirado quando eles passaram a receber pensão de alimentos.

“O direito à segurança social que inclui uma pretensão de exigência da dignidade dos menores deve ser considerado da mesma forma que o direito à segurança social da queixosa”, dita o documento assinado pela jurista Sara de Almada Domingos. “Os menores são excluídos da atribuição do RSI porque recebem alimentos. A mãe é excluída da atribuição do RSI porque os ? lhos recebem alimentos. A circunstância que os diferencia é o facto de uns receberem rendimentos e outro não.” Paula é arquitecta. Conta 12 anos de trabalho precário. “Sempre trabalhei a recibos verdes . Nunca foi fácil. Às vezes, passava meses sem trabalho na área, mas ia encontrando trabalho, ia gerindo.” Quando engravidou, já trabalhava meio tempo num atelier de arquitectura e outro meio num café.

Contava 36 anos. Conhecia os discursos sobre maternidade adiada, envelhecimento, incentivos à natalidade. “Claro que me assustava ter um ? lho. E a prova disso é que não tive mais cedo.” Se não fosse naquele momento, quando seria? “Achei que não devia ter medo. Que o trabalho ia surgindo. E não dependia só de mim. O pai da minha ? lha é funcionário público. Tem vínculo laboral sem termo.” Além de trabalhar num atelier e num café, frequentava um mestrado. Pareceu-lhe demasiado para uma grávida. Deixou o café. E comunicou a gravidez ao atelier. “Trabalhei até ao último dia de gravidez.

Dois meses e tal depois de a minha ? lha nascer, chamaram-me e disseram-me que iam rescindir o meu contrato de prestação de serviços.
Alegaram que não tinham dinheiro para continuar a pagar.” Recusas dos empregadores Não tinha direito a subsídio de desemprego. Tinha uma pequena poupança. “Primeiro, ia dando resposta aos anúncios que iam surgindo na minha área. Depois, percebi que tinha de tentar outras áreas.” Já fez trabalho grá? co, já cozinhou num café, já fez atendimento ao público numa loja de decoração, já pintou casas, já limpou jardins, já fez tradução e revisão de texto, mas desde que teve bebé, há três anos, tudo parece mais complicado. “A partir do momento em que dizia que tinha uma ? lha, bebé, a atitude mudava.

Tem 39 anos. No ano passado, pela primeira vez na vida, teve de pedir ajuda à Segurança Social Arquitecta queixa-se à Segurança Social e à Provedoria de Justiça de norma que subtrai pensão de alimentos a rendimento social de inserção Pobreza Ana Cristina Pereira Perguntavam-me: Como é que vai fazer, se a sua ? lha ? car doente? Quem vai ? car com ela? Tem apoio? Tinha de responder. Tinha de ser honesta. E tudo isso pesa.” Não sabe quando contribuiu o desemprego para o ? m da relação. A menina contava dois anos quando o pai saiu de casa. Em Janeiro de 2015, Paula engoliu em seco e recorreu ao RSI. Em Fevereiro, atribuíram-lhe o valor máximo: 178,15 euros em seu nome e 53,44 em nome da menina.
O ex-companheiro ainda pagou a renda uns meses. Tentaram perceber como se poderiam organizar. Fizeram contas para apurar os gastos exclusivos da criança, com fraldas, produtos de higiene, vestuário, alimentação, saúde. Decidiram que o pai, que pode ver a ? lha sempre que quiser, pagaria uma pensão de alimentos de 120 euros. “Esse valor foi decidido em função dos dias que ela está cá em casa e das despesas que eu tenho, pensando que teria, pelo menos, aquele valor de RSI”, diz ela.

Nunca antes tinha bene? ciado de uma prestação social. “Muda muita coisa na vida quando se tem um ? lho”, suspira. “Já precisaria de um sítio para viver, mas uma coisa é estar sozinha e outra é ter uma ? lha.” Há que lhe garantir condições.
“Quando pedi RSI, foi por não poder cumprir com a minha parte.” Em Novembro, quando requereu a renovação da prestação, entregou na Segurança Social a cópia do acordo de regulação das responsabilidades parentais, que ainda não tinha sido homologado pelo tribunal. Em Dezembro, sem qualquer aviso, recebeu 111,60 euros de RSI em vez de 231,60.

Pediu explicações à Segurança Social. Foi recebida quinta-feira.

Protestou: “Eu só soube que o meu RSI tinha sido reduzido pela transfe“Se a minha fi lha tivesse fi cado à guarda do pai, esta parte não me seria retirada”, sublinha. “Ela fi cou comigo, porque nós, eu e o pai, entendemos que isso é o melhor para ela”
Ideias para os deputados: e se cada lei fosse avaliada pelo impacto que tem na pobreza? O Parlamento discute hoje o tema: “Reposição dos complementos sociais e combate à pobreza”. O que deve estar em cima da mesa? O que é que, em primeira instância, se deve discutir? Demos a palavra aos especialistas. O presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza/Portugal, o padre Agostinho Jardim Moreira, aconselharia os deputados a criar um verdadeiro plano estratégico.

“Até 2010, havia os planos nacionais de acção para a inclusão, mas depois veio a troika, deixou de haver uma estratégia nacional contra a pobreza, o país limitou-se às respostas assistencialistas. Temos que sair da visão da esmolinha e, para isso, o Parlamento deve olhar para a pobreza de forma integrada: devia ser criado um grupo interministerial, dependente do primeiro-ministro, porque o combate à pobreza não se faz só com o Ministério da Segurança Social, tem de envolver Saúde, Educação, Habitação. E devia ser criado, no próprio Parlamento, um grupo que passasse a analisar o impacto das leis na pobreza.” Jardim Moreira lembra os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), citados na proposta de estratégia nacional de combate à pobreza e exclusão, da Rede Europeia, recentemente divulgada: se a população portuguesa for dividida em escalões de rendimento, começando com os 10% mais pobres e terminando nos 10% mais ricos, verifica-se que entre 2009 e 2013 “o rendimento dos 10% mais ricos regista um decréscimo de cerca de 8%”, enquanto “o rendimento dos 10% mais pobres diminui 24%”. Ou seja, diz Jardim Moreira, foi este “o impacto das medidas de troika”. Seria este tipo de estudo que o INE fez que se deveria fazer para todas as leis que o país aprova, defende.

“O facto de ter havido um enorme aumento das transferências de recursos [1400 milhões de euros] para o terceiro sector sem que ela tenha sido acompanhada, em igual medida, de uma capacidade de monitorização da e? cácia dessas transferências” deve ser alvo de atenção. “Não tenho nada contra a transferência, mas tem de ser avaliado.” Em segundo lugar, Pedro Adão e Silva levanta uma questão “mais técnica”, mas que acha importante: “É preciso alterar a escala de equivalências, sobretudo no que diz respeito à forma como as crianças Andreia Sanches Tipos de famílias atingidas pela pobreza Linha de pobreza, em euros/mês 1 adulto sem crianças 1 adulto com 65 ou + anos, sem crianças 2 adultos, ambos c/ menos de 65 anos, sem crianças 2 adultos, pelo menos 1 c/ 65 ou + anos, sem crianças 1 adulto c/ pelo menos 1 criança 2 adultos com 1 criança 2 adultos com 2 crianças 2 adultos com 3 ou mais crianças Risco de pobreza dos agregados com crianças dependentes, em %* Risco de pobreza dos agregados sem crianças dependentes, em %* *Taxa de risco de pobreza após transferências sociais (pensões, abonos, subsídios, etc.) 2011 2012 2013 2014 416 15,2 24,2 26,6 16,6 16,5 20,5 30,7 16,2 17,0 41,2 409 15,0 21,9 21,6 17,0 13,4 22,2 33,1 16,0 19,9 40,4 411 15,8 23,1 22,5 17,4 13,1 23,0 38,4 15,4 18,0 38,4 422 16,7 25,4 26,8 16,9 14,4 22,2 34,6 13,7 20,5 37,7 são contabilizadas nos agregados familiares.” Explique-se resumidamente: há uma série de prestações sociais, como RSI, ou o abono de família, que só são atribuídas a quem tem rendimentos mais baixos, são as prestações “sujeitas a condição de recursos”. Para calcular quer a elegibilidade de uma dada família, quer o montante da prestação que pode receber, os serviços da Segurança Social atribuem a cada elemento do agregado familiar um determinado peso por exemplo, crianças contam mais do que os adultos utilizando escalas de equivalência. “As alterações a este nível contribuíram para o aumento de pobreza infantil que observámos em Portugal”, exemplo ca Adão e Silva. Nas mudanças no RSI, aprovadas pelo Governo de António Costa, as crianças já passaram a “valer” em vez de 30%, 50% do valor de referência do RSI.

Porquê a urgência? O debate sobre “Reposição dos complementos sociais e combate à pobreza” foi requerido pelo grupo parlamentar do PS, com carácter de urgência, precisamente na sequência das medidas de “reposição de mínimos sociais” aprovadas pelo Governo, explica o deputado João Galamba. “Este foi o momento em que foi possível agendar.” Do pacote de medidas de “mínimos sociais” fez ainda parte o Complemento Solidário para Idosos (CSI) uma prestação social que visa aumentar os rendimentos de pensionistas com pensões muito baixas. Em 2013, o valor de referência do CSI passara de 5022 euros/ano para 4909 euros/ano, o que excluiu idosos da prestação. O Governo decidiu repor o valor de referência, num diploma publicado no último dia de 2015.

É de todas estas medidas que se vai falar, continua Galamba, sem adiantar nenhuma proposta concreta que o grupo parlamentar do PS tenha para apresentar. Questionado sobre a razão para a urgência, o deputado responde: “A pobreza é sempre uma urgência.” tegrada, consistente, compaginável com a melhoria das ? nanças públicas, que dê prioridade à redução da pobreza infantil, que tenha uma visão sobre o problema transversal, que envolva todo o Governo, que de? na metas e objectivos quanti? cados, que possam ser alvo de avaliação, é uma condição essencial para melhorar a justiça social e uma condição essencial para um desenvolvimento sustentável do país.” E há muito que isso falta, continua Farinha Rodrigues. Mesmo os planos nacionais de acção para a inclusão que existiram até 2010 “não tinham essa quanti? cação de metas”, passível de avaliação.
Em segundo lugar, o economista diz que é preciso que haja “uma recomposição, tão sustentável quanto possível, dos rendimentos” a reposição gradual dos valores do Rendimento Social de Inserção (RSI), já aprovada pelo executivo, bem como o aumento do abono de família e das pensões (em 0,4%) até 628 euros “vão no bom caminho”, considera.

Avaliar terceiro sector Pedro Adão e Silva, sociólogo e co-autor do recentemente publicado livro Cuidar do Futuro Os Mitos do Estado Social Português, sugere aos deputados duas prioridades.

Primeiro, que se avalie o impacto do reforço do papel (e das funções) das instituições sociais, proRendimento dos pobres diminui 24% entre 2009 e 2013 rência bancária. Não recebi nenhuma carta em casa.” A técnica que a atendeu retorquiu: “É absolutamente impossível, todos os bene? ciários receberem um ofício em casa.” Tudo isto lhe parece “absurdo”.

“Não é que eu esteja à espera que o Estado pague o meu encargo com a minha ? lha”, diz. “Se tivessem cortado a parte da minha ? lha, eu aceitaria. O que eu não aceito, porque não é de todo admissível, é terem reduzido a minha parte, a que me compete enquanto indivíduo.” “Se a minha filha tivesse ficado à guarda do pai, esta parte não me seria retirada”, sublinha. “Ela ? cou comigo, porque nós, eu e o pai, entendemos que isso é o melhor para ela.” Pergunta-se o que quer o Estado que ela faça agora. “Vou usufruir da pensão de alimentos da minha filha? Vou prescindir do direito/dever de lhe proporcionar mais qualquer coisa?” Não lhe parece certo.