11.1.23

“Bater no fundo” e usar o palco como trampolim para a reintegração social

André Borges Vieira, in Público

Em apenas um dia, do zero, um grupo de pessoas em risco de exclusão social monta uma peça que é apresentada no mesmo dia no Clube Fenianos Portuenses. Até ao final do ano há mais duas sessões.Ana, Emílio e João não se conheciam até há pouco tempo, mas, sem saberem, já partilhavam algo em comum. Todos eles têm um sonho que ainda não concretizaram. Todos eles estão agora a persegui-lo. O objectivo é alcançá-lo. São de três gerações diferentes. Por ordem, têm 44, 60 e 26 anos. Nasceram em localidades diferentes e têm histórias de vida distintas – todas elas com percalços que os fizeram desviar-se do foco. Encontraram-se no Porto, num palco, para cumprirem o sonho de entrarem no mundo do espectáculo, mais concretamente o das artes performativas.

A abrir mais uma porta para essa oportunidade está o Clube Fenianos Portuenses (CFP), através de uma das várias actividades do projecto INCukTurar-te, cujo motor é trabalhar contra a exclusão social através da cultura. Este exemplo no Porto é um dos muitos que são financiados no país inteiro, no âmbito do programa Cultura Para Todos.

No centro de uma das salas do clube fundado em 1904, Ana, que responde também pelo nome Black Rose, reage a uma deixa entregue por um colega de palco que indaga sobre sonhos. Seguindo o guião da peça que se ensaia, a actriz amadora diz que sempre quis ser bailarina. Qualquer semelhança do texto deste enredo com a realidade não é mera coincidência. Quando o PÚBLICO visitou o espaço ensaiava-se a peça É, com direcção artística da Apuro Associação Social e Cultural (que também dirige esta actividade do CFP), que já passou pelo palco e é baseada na história pessoal de cada um dos protagonistas.

Este exercício serviu apenas de aquecimento para o grupo de pouco mais de uma dezena de pessoas aspirantes a actores. O desafio maior ainda estava por chegar. No âmbito da actividade Ateliers de Criação do CFP, em apenas um dia, do zero, o elenco tem de escrever, preparar, ensaiar e apresentar ao vivo um espectáculo para um público que não paga bilhete.

O grupo é composto maioritariamente por pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo. Todos eles correm o risco de exclusão. Nessa situação está Ana, que actualmente vive num albergue. Nasceu em Esmoriz, mas há uns meses mudou-se para o Porto, por força de circunstâncias pessoais que a obrigaram a seguir esse rumo. Conheceu o projecto dos Fenianos no sítio onde está temporariamente alojada e quando lhe perguntaram se queria participar não hesitou: “Disse logo que sim.”

Na sua deixa do texto que interpretava naquele dia dizia que queria ser bailarina, mas também tem o sonho de poder seguir “o canto e a representação”. Conta que chegou a ter aulas de dança contemporânea e de salão. Cantar só acontece em “uns karaokes”. Como actriz, até há bem pouco tempo, só tinha feito “duas peças quando andava no liceu”.

“A minha vida foi sempre um bocadinho travada nestes sonhos. Os meus pais não queriam muito que eu ingressasse nisto. Diziam que era para os ricos. Fui adiando. Os anos foram passando, fui mãe e fui ficando para trás”, afirma. “Agora, tenho asas para voar”, acredita.

Participar neste ateliê criativo é, sobretudo, uma via para a integração social, depois de um passado turbulento que a fez mudar de cidade. E parece estar a resultar: “Isto é uma família que nós temos aqui.”

Do sítio onde está agora olha para o futuro com optimismo. Actualmente, está desempregada, mas o objectivo é, aos poucos, organizar a sua vida até conseguir recuperar a independência financeira. “Neste momento quero dar o salto, quero ir para uma casa. Mas não estou a conseguir porque há muitos entraves”, conta. “Por agora vou-me ocupando e isso vai-me trazendo alguma esperança”, diz.

Dar a volta por cima

Já com alguma experiência (recente) de palco, Emílio Costa, nascido no bairro da Pasteleira está como peixe na água nesta actividade. E também está completamente à vontade com o seu passado. Agora, vive no presente, para o dia-a-dia, mas também com um olho no futuro. Na mesma peça que se ensaiava desvenda um pouco de outros tempos, já distantes, da sua vida. Parte do texto recorda os momentos de felicidade fugaz que sentia quando chegava a casa com dinheiro subtraído de bolso alheio.

Não tem qualquer problema em encarar de frente essa fase. Fê-lo, conta, por necessidade, para ajudar a mãe doente. “A minha mãe era o meu pilar. Era a base da minha existência”, desabafa. Há 30 anos, no dia do seu aniversário, perdeu a mãe. Nessa altura perdeu o rumo. Teve problemas de adições e passou a viver à margem. “Bati mesmo no fundo”, recorda. “Na altura, vivia num bairro camarário, que era o bairro São João de Deus. Abandonei tudo. Para ter uma ideia montei uma tenda à porta do cemitério do Prado do Repouso para estar junto ao túmulo da minha mãe”, conta.

Um dia acordou e, “como se ouvisse uma voz no ouvido”, pegou numa tesoura e cortou a barba e o cabelo. “E então dei a volta por cima. Mas quando estava tudo a correr bem fui detido”. Ficou preso durante cinco anos no Estabelecimento Prisional do Porto, em Custóias.

Não era sítio onde quereria ter ido parar naquela altura de plena mudança. Mas, acredita, há males que vêm por bem. “Posso-lhe dizer que foi a causa da minha salvação. O ir preso salvou a minha vida. Quando fui preso pesava 39 quilos. Só tinha pele e osso, não tinha mais nada. E quando saí pesava 60 e tal quilos”, relembra.

Emílio tem o à-vontade natural para conseguir arrancar uma gargalhada sem grande esforço. E tem histórias suficientes para que se escrevesse um guião e múltiplas sequelas. Mas também gosta de encarnar outros papéis. A sua primeira experiência em palco surgiu após convite da Asas de Ramalde, IPSS parceira do projecto, que frequenta durante o dia.

“Um belo dia, a minha técnica disse que tinha uma proposta para nós. ‘Quem é que quer fazer teatro?’ A minha pergunta foi só: ‘Onde é que são os ensaios?’”. A partir daí foi sempre a somar currículo: “Comecei nos ensaios, fiz as Bravas no festival Mexe com a Pele. Depois veio a [peça] É.”

Agora está nesta actividade dos Fenianos. “Considero que até agora este foi o maior desafio da minha vida porque chegamos aqui de olhos fechados, criamos um tema, o roteiro, ensaiamos e temos de o apresentar no próprio dia”, diz. O ateliê inclui “desenho, artes plásticas, dança, música”, entre outras disciplinas, mas a parte do processo que mais gosta é a de representar.

O palco é um dos seus sonhos. Mas tem outro. “Gostava de ir para a faculdade”, desvenda. Ao longo dos anos foi tirando as equivalências para atingir o objectivo. Mas ainda não está em condições de se poder candidatar. O objectivo será tirar o curso de preparador físico. “Gostava de ser treinador de futebol”, afirma. Por agora, vai continuar a apostar na representação.

Um oceano no caminho do palco

Do outro lado do oceano, João ou “Canção”, nome pelo qual é conhecido, veio para Portugal em busca de uma oportunidade. Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, há 26 anos e há cerca de seis meses mudou-se para Lisboa, mas por pouco tempo. “Não consegui arranjar trabalho e aí subi para o Porto e aqui consegui um contrato”, diz.

Nas horas vagas está a ter aulas de guitarra na Academia de Guitarra do Porto. E agora juntou-se aos ateliês criativos dos Fenianos. Conheceu o projecto através de Emílio, com quem divide casa. “Nas nossas conversas ele me chamou e me convidou.”

Foi dos últimos a entrar, mas está entusiasmado. Desde cedo despertou para as artes. A sua maior paixão é a música, mas também têm um fascínio pela representação. “Aos 15 anos entrei para uma escola de teatro”, recorda. Frequentou o estabelecimento durante dois anos. Mas a música sempre foi o que o moveu. E, por isso, pegou no violão que o pai lhe tinha oferecido em pequeno e foi aprender a dedilhar as seis cordas. Só que, “por motivos pessoais” teve de abandonar o estudo do instrumento.

Retomou-o agora no Porto, onde também voltou à representação, no âmbito da actividade dos Fenianos. “Estou feliz por ter voltado depois de tanto tempo e por ter despertado novamente para o teatro. Por mais que eu queira levar a música mais profissionalmente acho que o teatro é uma arte com a qual vou sempre tentar ter um contacto de alguma forma”, afirma. Para poder investir mais na música falta conseguir ter uma guitarra própria para praticar em casa. Por agora só tem acesso a instrumentos na escola onde estuda.

Os três aspirantes a actores fazem parte de um grupo de pouco mais de uma dezena de pessoas que estão inscritas nos ateliês criativos do projecto de inclusão promovido pelo CFP. A orientá-los nos próximos meses estará Rui Spranger, director artístico da Apuro. Desde que o programa INCukTurar-te está em marcha – começou em Julho deste ano – no âmbito da actividade Ateliers de Criação, uma das várias que existem no projecto, já foram apresentadas três peças. Até Dezembro, quando acaba, realizam-se mais duas. A participar na actividade está uma maioria de pessoas que já estiveram em situação de sem-abrigo, mas qualquer pessoa pode entrar.

Rui Spranger explica como é que os ateliês funcionam: “O objectivo do projecto é montar-se um espectáculo num dia. Chega-se aqui às 10h da manhã e às 18h está-se a apresentar um espectáculo. Existem várias oficinas e é convidado sempre um director artístico. Esse director artístico monta a equipa. Pode montar a equipa com música, com teatro, com dança e com artes plásticas.” Mas já houve um director artístico que escolheu deixar a música de lado e optou pelo circo.

Nesta actividade têm participado cerca de 15 pessoas por ateliê. No total, participaram quase 50. “A ideia era conseguirmos chegar às 40 [pessoas] em cada ateliê”, conclui.