10.1.23

Os pobres mais pobres

Joel Neto, in Expresso 

Portugal torna a despertar para a pobreza. E se uma região liderasse todos os rankings de subdesenvolvimento do país ou de toda a UE? Essa região existe e são os Açores. Quase não há um indicador em que o arquipélago não se distinga pela negativa. Lisboa assobia para cima, os políticos, intelectuais e corporações locais assobiam para o lado. Nem os pobres se indignam: não chegam a saber que são pobres. 

O paraíso tem verso sombrio

Há uns tempos perguntaram-me por que razão faço tanta questão que o meu filho, com nascimento aprazado para este outono, cresça nos Açores, onde nasci e vivo desde 2012. Ensaiei argumentos numa crónica de jornal — a centralidade da geografia, a presença do mar, a exuberância da natureza — e até cheguei a aflorar a importância, para uma avaliação geral, da paleta socioeconómica disponível: “Porque poderá conhecer uma razoável abundância e todos os géneros de pobreza, contanto consigamos ajudá-lo a munir-se de curiosidade e de amor.” Mas, agora que penso nisso com mais cuidado, percebo que deixei o mais importante de fora.

Quero que o meu filho cresça nos Açores porque, à partida, crescerá inserido na classe média. Nenhum outro lugar em Portugal é tão privilegiado para uma família de classe média como os Açores. Entretanto, um rico vive tão bem no arquipélago como — é da sua condição — onde quer que seja. Já um pobre vive pior do que em qualquer outra região do país, em alguns casos até da Europa. E para o percebermos não precisamos de exercer uma motricidade muito fina. Nem sequer de visitar de facto as ilhas: basta-nos abrir o site do Instituto Nacional de Estatística (INE) ou mesmo o da Pordata.

Com regularidade ou em permanência, os Açores lideram virtualmente todos os rankings nacionais de subdesenvolvimento humano. Lideram, desde logo, na maior parte das tabelas mais negras da economia: o desemprego (fora flutuações sazonais), a exclusão social e a desigualdade na distribuição dos rendimentos, a dependência do rendimento social de inserção (RSI), com o triplo da taxa nacional, muitas vezes, e a subsidiodependência em geral, o défice de ascensor social, a taxa de pobreza e a pobreza persistente, para citar apenas as principais classificações.

Mas a pobreza não se resume aos números da economia e portanto o mesmo arquipélago lidera nos principais indicadores de fragilidade na educação ou na má relação dos cidadãos com esta: o abandono escolar (em anos normais, igualmente com o triplo da taxa nacional, e neste caso também com a maior de toda a União Europeia), o insucesso escolar, o analfabetismo, etc. Como lidera, aliás, nas deficiências na saúde: entre outros índices, no da mortalidade e no da obesidade infantis, no da diabetes e no do alcoolismo, no do suicídio jovem e, claro, no da baixa esperança média de vida (três anos abaixo da média nacional e quatro da do continente).

Paradigmaticamente, e em coerência, lidera nas mais variadas assimetrias políticas: desde logo, na taxa de abstenção e na insuficiência de participação cívica das mulheres. E lidera, como se torna inevitável tendo com conta todo o quadro, nas chamadas “violências contra as pessoas”: a violência doméstica e o abuso sexual, o incesto e a gravidez na adolescência, entre outros rankings.

São números, em muitos casos, do outrora chamado ‘terceiro mundo’. Não são os únicos a caracterizar as “ilhas de bruma”. Faltam muitas outras coisas nos Açores: cuidados, serviços, recursos, sofisticações, distrações. Mas isso já faz parte do compromisso, mesmo quando este exige o sacrifício da mundividência (isto é, das noções do tamanho e da posição relativa das coisas, da perspetiva, da profundidade de campo e da concatenação em geral). Viver no paraíso da classe média é, para a maior parte desta, uma negociação. Já para os pobres não passa de uma fatalidade. Um pobre dos Açores não pode negociar. Não conhece sequer os termos do negócio, porque provavelmente nem sabe que é pobre.

Olha-se para a sociedade açoriana, toma-se-lhe o pulso, identificam-se-lhe as rotinas, e a conclusão impõe formulação bíblica: mais depressa passará um camelo pelo buraco de uma agulha do que um pobre das ilhas suplantará a condição dos seus pais — mais ainda se crescer num bairro social, até há pouco tempo (e talvez ainda, embora escasseiem agora os recursos) a principal política de habitação em vigor. Isto é: lugares onde é ainda mais provável ouvir de uma criança, perguntando-se-lhe o que quer ser quando for grande, a resposta: “Quero viver do rendimento.” Ou “do ‘resi’” — o dito RSI.

São “Os que, mesmo nascendo no inverno,/ pouco sabem do frio”, como nos versos de Hélia Correia. Um terço da população total, no que importa a este texto: tantos quantos vivem oficialmente abaixo do limiar da pobreza e da exclusão social. E pouco podem, perante a fúria desse rumo, o Espírito Santo e a sua exultante partilha, redentores para todos menos para aqueles que a história empurrou para lá da redenção. Falamos de um arquipélago e — mais importante do que isso — de um povo a caminho de lado nenhum, pelo menos enquanto não se inverterem estas tendências. As explicações são variadas, algumas com raízes tão longínquas que se diluem no tempo. Mas duas são insofismáveis: a negligência das elites locais — que se confundem com a própria classe média, como é típico de uma sociedade essencialmente sem ricos e sem riqueza — e a ausência de escrutínio nacional.

INCÚRIA GENERALIZADA

As razões pelas quais Lisboa há muito deixou de monitorizar os Açores e as condições de vida dos açorianos, se é que alguma vez o fez, andam entre os âmbitos da negligência e do cinismo. Por um lado, a Madeira foi presidida durante tanto tempo por um populista capaz de fazer da palhaçada e da concentração de atenções uma arma política, que se tornou apaziguador (e depois confortável) encaixar os Açores no papel de filho não problemático. Por outro, ambos os arquipélagos sempre custaram dinheiro ao Orçamento do Estado, pelo que foi muitas vezes tentador resumi-los ao papel de propriedades ultramarinas que num verão destes até se pode visitar, para tirar fotografias — e, nesse caso, uma delas ainda mais fotogénica, mais “pura” e grosso modo mais hospitaleira do que a outra, pelo que adequadíssima ao estatuto de éden pátrio.

A incúria local tem outro dolo, porque a deficiente autonomização da pessoa também representa uma oportunidade eleitoral que, quando os recursos são quase todos canalizados pela mesma entidade, se torna facilmente manipulável pelo poder. Nos Açores, o governo regional é ao mesmo tempo o supremo patrão (a função pública, de que tutela boa parte, representa a maior força laboral) e o representante da indústria mais relevante (a da extração de subsídios europeus, cujas candidaturas é ele a mediar). Mercado, não há. Há em cada ciclo político um gabinete, às vezes um homem, no controlo de todas as verbas, e que em tutelas recentes depressa fazia saber em volta o mais importante: aos secretários regionais acabados de nomear, que estavam ali, em primeiro lugar, para garantir o prolongamento do ciclo em causa; aos militantes e controleiros do partido no poder, que em outubro era preciso certificarem-se de que os dependentes de prestações sociais iam votar, enviando para o quartel-general mais próximo uma foto do boletim tirada com o telemóvel; e aos recém-chegados com formação ou ambições, que, nas ilhas, as coisas se faziam “de uma certa maneira”.

Para os impertinentes, como sempre fiz questão de ser — mas nas ilhas com outro sentido de responsabilidade —, ficava guardada a explicação historicista: os Açores vinham das próprias caves do tempo, a pobreza

instalara-se há meio milénio e jamais se conseguiria neutralizar da noite para o dia. Ainda há umas semanas, à margem de um evento público, me detive à conversa com um autarca com longo percurso na governação regional, que me voltou a falar do “atraso endémico”, das leis “do morgadio” — enfim, do costume.

E não me custa concordar com ele. Mas só em parte. Fez-se mais com menos nos primeiros anos de autonomia, em que foi preciso melhorar e até construir portos, aeroportos e todo o género de infraestruturas essenciais ao funcionamento daquilo que, do ponto de vista da administração, é um pequeno país repartido por nove porções de terra espalhadas por centenas de quilómetros de mar enfurecido. Entretanto, levamos quase 40 anos com uma torneira de dinheiro aberta no jardim e, em vez de os índices de desenvolvimento humano dos açorianos convergirem com as médias nacionais, continuam a milhas delas.

Olha-se para a sociedade açoriana e a conclusão impõe formulação bíblica: mais depressa passará um camelo pelo buraco de uma agulha do que um pobre das ilhas suplantará a condição dos seus pais

De vez em quando ainda há uma estatística que melhora um pouco (como até é o caso, desde 2020, da chamada taxa de risco de pobreza, relativa ao rendimento disponível) mas, se não é a curva estrutural da economia a contê-la, então há de ser um alarme conjuntural qualquer: no ano seguinte, no máximo no outro à frente, já a região está de novo no último lugar desse ranking também. A classe média, para a qual o sistema e a sua comunicação estão desenhados — e que os controla, repito —, não se chateia: a pobreza à volta permite-lhe distinguir-se, o que não é despiciendo. “As pessoas também não têm juízo nenhum...”, suspiram os mais indulgentes, cada um segundo a sua formulação. E, se a condescendência se revelar uma opção demasiado obscena, avaliado o requinte da audiência, ainda lhes resta a gargalhada: “Três anos a menos de esperança média de vida? O que queriam, com as touradas da Terceira e a aguardente do Pico?”

Mas a desfaçatez tem perna curta. Basta cruzar os números do INE com os do PNUD: a taxa de risco de pobreza dos Açores era, em cima do arranque da pandemia, superior à da Albânia, à da Arménia, à do Bangladesh, à do Brasil, à da Bulgária ou à do Botsuana — e ainda vamos na letra B. As oscilações verificadas entretanto são, em termos absolutos, residuais. E distinguir as consequências das causas, neste caso, sim, é o verdadeiro salto quântico.

O que a elite e a classe média açoriana ignoram é que a Córsega (por exemplo) também começou desta maneira, com praticamente a mesma complexa conjugação de recalcamentos históricos, recursos a fundo perdido, irresponsabilidades políticas e demasiada gente afundada nas dependências. Hoje, é uma das regiões mais violentas da Europa, um faroeste onde a fraude em torno do subsídio agrícola nacional ou europeu — ou da ajuda pública em geral — convive com a extorsão, a corrupção, a assassínio, o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, o roubo com violência e o aparelhamento de compras públicas.

Não perdemos pela demora. Só em 2021, a criminalidade violenta cresceu nos Açores um total de 71%. Foram vários os homicídios (tentados, concretizados e até qualificados) ocorridos nos últimos meses, em particular em São Miguel, e, segundo os últimos dados da polícia, foi apreendido no arquipélago mais de um terço das novas substâncias psicotrópicas produzidas e/ou traficadas em Portugal. No próprio dia em que escrevo este texto foi noticiada a detenção, no concelho do nordeste, de um bando de cinco elementos que assaltou uma residência da freguesia da Achadinha e manteve o proprietário sequestrado, com recurso a catanas e a martelos, durante uma noite inteira de terror.

Quem não queira ver nisto uma relação com o facto de ter sido precisamente pelos Açores que a extrema-direita reentrou no arco do poder em Portugal, fá-lo por escolha própria. E quem não queira ver uma relação com a circunstância de um em cada quatro jovens açorianos entre os 15 e os 34 anos não trabalhar nem estudar, idem.

UM DISCURSO HISTÓRICO

Foi neste contexto que, na última primavera, José Manuel Bolieiro, presidente do governo regional desde o final de 2020, anunciou a intenção de concretizar a promessa de pôr “as pessoas primeiro” entregando aos esforços regionais de convergência social 561 milhões dos €1140 milhões a chegar, no âmbito da estratégia de mitigação dos efeitos da pandemia, do FEDER e do Fundo Social Europeu. O anúncio surpreendeu quase toda a gente: enquanto o PS insistia na falta de €80 milhões para as empresas, era o líder da periclitante coligação de direita liderada pelo PSD, e aliás apoiada no Parlamento pelo Chega de André Ventura, a chegar-se à frente não apenas na identificação da pobreza como problema fulcral do arquipélago, mas a reclamar para si a agenda da coesão.

Foi talvez o mais importante discurso de um chefe do governo regional no século XXI: a recolocação de factu dos Açores na rota do desenvolvimento — de que as ilhas se haviam tornado a tresmalhar, repetindo com o PS (1996-2020) a eternização no poder, e a consequente degradação na governação, que já permitira ao PSD (1976-1996) — e, já agora, a de um político de invulgar low-profile, com inegáveis qualidades humanas mas (ou talvez “e”) capaz de negociar até com o diabo, no rumo da própria História. Mas também ficou de imediato claro que, se os parceiros de governo regional (o CDS-PP e o PPM) estavam a bordo, o mesmo não acontecia com as forças do apoio parlamentar (a Iniciativa Liberal, o Chega e um deputado independente vindo do desmembramento deste). O que seria surpreendente se o desprezo pelo tema, salvas oportunidades eleitoralistas, não fosse transversal à sociedade açoriana.

A começar pelo próprio partido que chefia o governo regional, e a que — espero conseguir dar relevância à nota pessoal — cheguei a estar ligado. Moderado de esquerda, ao mesmo tempo apreensivo com a estagnação das minhas ilhas e convicto das virtudes da alternância democrática, aceitei em 2012 tentar ajudar o PSD a regressar ao poder em 2016, assumindo o papel de coordenador do seu programa eleitoral e de governo. Dizer que não foi um sucesso seria um eufemismo: as distâncias ideológicas eram insanáveis, a minha inclinação para as conveniências de circunstância de um partido político era nenhuma e, como não podia deixar de ser, os resultados foram desastrosos. Mas nunca me esqueci de como em todas as filas à minha frente, sempre que subia ao púlpito e tornava a alertar para a tragédia humana que o agravamento dos nossos índices de desenvolvimento ia desenhando, havia militantes revirando os olhos.

Não são só as bases do PSD, e também não são só os partidos. Há quase 50 anos, quando os pioneiros da autonomia constitucional transformaram o arquipélago numa região, fizeram-no com a colaboração de uma série de entidades e corporações. A Universidade dos Açores disseminou a educação superior, com despesas reduzidas e currículos adaptados às necessidades locais. A RTP Açores levou os açorianos às casas uns dos outros, favorecendo um reconhecimento entre pessoas cuja identidade comum não podia concretizar-se pelo mesmo género de decreto que determina uma unidade política. Os intelectuais e artistas das diferentes ilhas, em particular escritores e músicos, empenharam-se em definir os contornos dessa identidade, construindo todo um edifício estético, plástico e lexical que se revelaria indispensável no processo de reconhecimento dos açorianos de si próprios.

Todos eles desmobilizaram, de alguma forma. Constrangida de recursos e nem sempre dirigida por figuras conscientes do seu papel histórico, a RTP Açores só nos últimos anos começou a recuperar algumas das obrigações a que fora renunciando, mas entretanto permanece a braços com a escassez de meios e de orçamento. Concentrada na sua própria sobrevivência, a Universidade ministra vários cursos na área social e até chegou a denunciar a ineficiência do ProSucesso, o programa salvífico com que Carlos César e Vasco Cordeiro tentaram martelar as estatísticas da educação, mas de resto só recentemente voltou a conseguir alguma visibilidade para o seu trabalho nos diferentes domínios da pobreza, quase sempre com assinatura do sociólogo Fernando Diogo. Já os intelectuais e artistas foram em muitos casos acumulando amarguras com o esquecimento (uns), deixando-se contentar por reconhecimentos menores (outros) ou apenas desinteressando-se da res publica (talvez a maior parte), até sobrarem apenas uns quantos veteranos com intervenção pública regular, quase sempre sem compromisso político — independente ou mesmo no âmbito dos partidos —, a par de uma série de jovens já muito mais moldados pela ideia de aldeia global, e portanto menos inquietos com a realidade regional, e uns quantos escritores de meia-idade (como será o meu caso) nem sempre de acordo quanto às principais urgências das ilhas.

Existe um chamado Conselho Económico e Social, que o Governo já prometeu integrar no processo de decisão estratégica, mas de que muitos se riem (e liderado por um banqueiro). Como não é difícil de perceber, a opinião pública não chega a sistematizar uma visão do problema. Nem serão os políticos — ou nunca o foram, até ao inesperado manifesto de Bolieiro — a sugerir-lhe tal coisa. Como me disseram tantas vezes no fim daquelas reuniões partidárias que me deprimiam: “As pessoas não gostam de ouvir essas coisas do incesto, da violência doméstica e do suicídio jovem. Ficam ofendidas.” É eleitoralmente estúpido levantar um assunto assim.

E também não serão as elites a fazê-lo, como já percebi. Munido de estatísticas e preocupações, tentei no início deste ano cativar uma série de intelectuais públicos e profissionais de relevo para uma monitorização independente, laica e humanista da situação social das ilhas. Convidei professores universitários, historiadores, padres, poetas. A resposta mais eloquente foi: “Outro observatório?” Como se estivéssemos a falar de nova confraria. A maior parte aceitou o repto, mas apenas por vergonha de dizer que não — à primeira convocatória, já tinha compromissos inadiáveis.

A OBSESSÃO DOS SENADORES

O que mais depressa ocupa espaço no debate público açoriano, bem vistas as coisas, são questões como a aprovação de um novo regime jurídico das atividades aeroespaciais, destinada a pôr a região na rota do espaço. Ou a criação de incubadoras, ninhos de empresas e bairros digitais, em debate um pouco por todo o lado, a pensar como sempre nos dinheiros europeus. Ou, naturalmente, a divulgação do próximo quadro comunitário de apoio, que nunca mais sai. Ou, na melhor das hipóteses, a redefinição do estatuto político-administrativo regional, cuja proposta já foi encomendada a Eduardo Paz Ferreira, com o intuito de propiciar uma reformulação da lei de finanças regionais e um (e cito) aprofundamento da autonomia.

É o único tema consensual na sociedade açoriana, na verdade: o reforço dos poderes da autonomia. Indiferentes ao modo como se vive nos muitos bairros e amontoados sociais espalhados pelas ilhas, os senadores vêm de vez em quando à janela reclamar novas competências para as autoridades regionais. Logo na semana seguinte, o partido mais empenhado em fazer um brilharete no Parlamento propõe a criação de uma comissão para o estudo da matéria. E os restantes apressam-se a aprovar a ideia por unanimidade: não custa nada, e ao menos isso os açorianos não detestam ouvir — até gostam.

Também isso aplaudo. Mas, de novo, apenas em parte. Sou um romântico da autonomia açoriana, embora menos das primeiras conquistas autonómicas do século XIX, classistas, do que da autonomia constitucional do pós-25 de Abril, exigida para conter a esquerda, mas concedida com um misto de alívio e — que é o que me interessa — consciência democrática. Agora, aprofundar acriticamente esta autonomia, como se a sua fragilidade fosse a escassez de latitude que a lei lhe confere, parece-me não só uma contradição, mas um risco. Muito antes disso, impõe-se uma reflexão: o que é que nesta autonomia, ou no modo como a exercemos, nos deixou neste ponto ao fim de tanto tempo e de tanto dinheiro? Só uma eficaz resposta a essa pergunta nos permitirá não acumular outros 50 anos de grave declínio relativo, apesar do sensível progresso absoluto — e ao fim dos quais talvez já não consigamos mesmo levantar-nos.

Indiferentes ao modo como se vive nos bairros e amontoados sociais espalhados pelas ilhas, os senadores vêm de vez em quando à janela reclamar novas competências para as autoridades regionais

De nada serve a autonomia, esta ou outra (mais ou menos expressiva), se não servir para uma melhoria efetiva das condições de vida da população. Tudo o mais será reconstruir a casa pelo telhado, para usar uma imagem batida. Posto em comparação com os Açores e os seus indicadores sociais, económicos e políticos, o continente português perde-se de vista. Na Madeira, apesar das bolsas de pobreza, do nepotismo endémico e das flutuações estatísticas, vive-se estruturalmente melhor e — muito importante — com mais mobilidade social. E, se para se desfazerem essas assimetrias for preciso equacionar o regresso transitório à figura do ministro da República, então é por aí que a revisão do estatuto deve passar: pela contenção temporária da autonomia, e não pela sua ampliação.

Temos preferido, pelo contrário, sublinhar “o sucesso” que são as regiões autónomas, para usar a expressão — um tanto paradoxal em quem reconhece a urgência de se pôr as pessoas primeiro — de José Manuel Bolieiro. Quase todos os dias nos queixamos de “afrontas centralistas” e, em geral, chamamos “ataque à autonomia” a qualquer denúncia da pobreza em que tantos açorianos vivem e não deixarão de viver. Até o federalismo pedimos, à americana — o nosso próprio estado, nada menos do que isso. É como que uma alucinação coletiva, que mais uma vez só se justifica porque apenas a classe média — isto é, a elite — tem acesso aos escassos fóruns de discussão existentes.

Ainda no verão, uma série de ficção televisiva então em gravações para a Netflix, com guião dos escritores Hugo Gonçalves e João Tordo e do realizador/criador Augusto Fraga (açoriano, por sinal), foi acusada de preparar uma visão arquetípica e condescendente de Rabo de Peixe, a freguesia de São Miguel a que vai buscar o nome. Autarcas, pequenos empresários e demais líderes de comunidade aproveitaram o simples anúncio da produção para vir esmurrar o peito em público, capitalizando eleitoral e economicamente. A ideia da verdade, tanto quanto os benefícios de uma denúncia capaz de catalisar reações positivas, foi-lhes indiferente — mesmo se Rabo de Peixe, que de facto fez algum caminho, continua, apesar disso, o supremo paradigma da privação e do obscurantismo em que se vive nas dezenas de aglomerados de indigência espalhadas pelas nove ilhas.

E, sempre que é preciso, pois diabolizam-se os próprios pobres. São os que “não querem trabalhar”. Os que “querem é viver do RSI”. Os que “andam o dia inteiro pelos cafés porque recebem milhares de euros do Estado” — mesmo quando se sabe que uma prestação do RSI pode não chegar aos €100.

Não estou isento de responsabilidades: eu mesmo, numa fase inicial, acreditei que a devolução da dignidade a essas pessoas tinha de começar pela recuperação do seu sentido de brio e, portanto, da sua relação com o trabalho. Só que, entretanto, passaram-se dez anos sobre o meu regresso. Neste intervalo, vi de tudo: preguiça e desespero, basto aproveitamento político e, acima disso tudo, a ignorância infinita de quem, vítima até nos casos em que abusa, não sabe sequer que a vida não pode ser de outra maneira — até porque nunca o viu acontecer.

Que isso possa custar €100 ou €200, a autodeterminação de uma pessoa e a sua disponibilidade para habitar a escuridão são uma circunstância que me envergonha ainda mais do que me indigna. E que, como diz o cálculo da OCDE, nas famílias em que isto acontece — normalmente, mais de 11% nos Açores, por oposição a menos de 4% a nível nacional — a pobreza esteja destinada a levar cinco gerações a erradicar só me mostra o quão milagrosa foi a minha própria salvação, tendo em conta o lugar e o contexto em que nasci.

É nesse lugar que pretendo que o meu filho cresça, apesar de tudo: nove pedaços de terra deslumbrante, habitada por gente gregária e polvilhada de tradições cultivadas com gosto e devoção. Mas porque o contexto dele será diferente, pelo menos enquanto eu conseguir proporcionar-lho. Entretanto, porém, o tempo continuou a passar. Aos sinais de insegurança, de dia para dia menos circunscritos ao contexto restrito da família, junta-se agora a ameaça da gentrificação. Já é comum encontrar em Ponta Delgada apartamentos de média dimensão a preços superiores aos €300 mil, às vezes €400 mil. Um dia que os ricos do mundo descubram realmente tal paradeiro, os Açores tornar-se-ão inabitáveis para qualquer português, quanto mais para um açoriano.

A brandura de costumes esgotou o seu potencial, e esgotou-o a todos níveis. O ataque a que a autonomia açoriana está de facto sujeita, tanto quanto a própria soberania portuguesa sobre o arquipélago, é esse: o da pobreza, da neutralização da pessoa e, a prazo, do esvaziamento de toda uma sociedade. A sua contenção exige de Portugal e dos portugueses, quaisquer que sejam, a mesma responsabilidade e o mesmo escrutínio. Na pior das hipóteses, ainda temos todos as ilhas para onde fugir com as nossas latas de atum. E depois?