10.1.23

Habitação: anatomia de uma crise

Sandra Marques Pereira e Isabel Flores, opinião, in Expresso

A fragilidade económica é o mais importante fator de exposição a uma crise de habitação que já é percecionada pela generalidade dos portuguesesAperceção da existência de uma crise de habitação já não se cinge a ativistas e a académicos ou a uma elite escolarizada e urbana: é uma perceção generalizada, independente da ideologia, do contexto geográfico, económico ou da escolaridade, como a sondagem ICS/Iscte evidenciou: 90% referem uma crise de habitação.

A situação atual da habitação tem características e fatores de risco específicos. As pessoas sabem-no, porque os vivem. A sua gravidade acentua-se com a acumulação desses fatores: do território à condição económica, passando pelo regime de ocupação da casa (propriedade ou arrendamento).

Esta é uma crise de acesso à habitação concentrada em territórios com características urbanas e/ou balneares atrativos para habitação ou turismo. Estes territórios têm sido destinos seguros para o investimento, onde os preços subiram bem acima dos rendimentos. O fenómeno vai-se expandindo aos territórios de proximidade.

A perceção da crise na zona de residência é mais sentida por arrendatários do que por proprietários (77% e 64%, sondagem ICS/Iscte). A maior vulnerabilidade dos arrendatários tem vindo a acentuar-se: a escassez de mecanismos de proteção e de soluções alternativas no sector do arrendamento é preocupante devido ao aumento da procura incapaz de comportar as rendas praticadas (o valor dos novos contratos aumentou 7,6% no 3º semestre de 2022, face ao período homólogo, INE).

Ao mesmo tempo, a acentuada subida dos preços de compra em Portugal (13,1% no 3.º trimestre de 2022, INE) reduz o acesso à casa própria, atenuando o peso da propriedade face ao arrendamento, tendência consolidada em Portugal a partir dos anos 70 do século XX.

Ao contrário da narrativa que confunde instabilidade com flexibilidade, não é crível que muitos dos que enveredam pelo arrendamento o façam por vontade própria, mas por falta de condições económicas – sem rendimentos para comprar, ficam reféns de arrendamentos demasiado caros e distantes das suas expectativas. A fragilidade económica é o mais importante fator de exposição a esta crise: fragilidade dos próprios e dos pais que, em Portugal, sempre foram um apoio no acesso à habitação, acentuando-se as dificuldades de autonomização dos jovens.