10.1.23

Falta de habitação e baixos salários entre os seis maiores problemas a chegar às instituições

Raquel Albuquerque, in Expresso

Mais de 20% das famílias que pediram ajuda à Deco este ano ganham menos do que o salário mínimo. Quase 70% trabalham
As carências sociais de migrantes e de estudantes universitários estão entre os seis maiores problemas a chegar às instituições. A falta de habitação e os baixos salários, transversais a todo o país, são considerados os mais difíceis de resolver.

RENDAS INACESSÍVEIS

Faltam casas, não há habitação social, as rendas não são compatíveis com os salários e a sobrelotação está a tornar-se mais frequente, dizem as instituições sociais. As dificuldades não estão só nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, mas em muitos outros pontos do país, como Faro, Beja, Castelo Branco, Coimbra ou Portalegre. “Existe pouca habitação social e é muito difícil arrendar. Um T2 ronda os €700 na cidade de Faro, e isso é um salário mínimo”, resume Ana Sofia Pereira, da Cáritas do Algarve. Em Setúbal, a pandemia aumentou o número de sem-abrigo, o que levou a instituição a arrendar apartamentos partilhados, através de um protocolo com a Segurança Social, para acomodar cerca de 15 pessoas que ficaram sem casa. As autarquias também não conseguem dar resposta aos pedidos de apoio das famílias, incluindo de migrantes que chegam como resposta à falta de mão de obra em áreas como a agricultura.

MIGRANTES COM CARÊNCIAS SOCIAIS

As instituições descrevem um crescimento gradual do número de migrantes a pedirem apoio, tanto por falta de habitação como por terem rendimentos instáveis e insuficientes para as despesas. Em Beja, o aumento do fluxo migratório é visível. “O acréscimo já não tem a ver com a pandemia, é mesmo uma nova realidade. Inicialmente, os migrantes vinham de forma temporária, com contratações sazonais. Mas o aumento da área agrícola no Alentejo, com maior exigência de mão de obra, gerou fluxos permanentes ao longo de todo o ano”, explica Teresa Martins, do Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes ­(CLAIM) de Beja. A outros pontos do país, como Coimbra, chegam também cada vez mais famílias oriundas de países africanos e do Brasil. “Temos tido muita procura de famílias com filhos que chegam para trabalhar e trazem algumas poupanças. Empregam-se na restauração, limpezas ou construção civil, mas o que ganham não chega e a certa altura ficam completamente desprotegidas”, relata Ana Paula Cordeiro, da Cáritas de Coimbra. Em Viana do Castelo, por exemplo, aumentam os pedidos de famílias oriundas do Brasil, Cabo Verde e São Tomé.

ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS SEM BOLSA

Um dos grupos a que as instituições sociais tiveram de prestar apoio nos dois últimos anos foram os estudantes universitários, sobretudo oriundos de países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), em locais distintos como Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Guarda ou Faro. Logo no início da pandemia, chegaram diretamente ao Banco Alimentar de Castelo Branco pedidos de quase 100 alunos que tinham ficado sem nada. “Uns têm bolsas dos seus países de origem, outros nem isso têm e vivem com muitas dificuldades, inteiramente dependentes de trabalhos temporários ou em part-time, muitas vezes de forma precária e irregular. Na pandemia ficaram privados desses rendimentos e tiveram de pedir ajuda para comer, pagar renda ou propinas. Houve mesmo situações de fome, porque tiveram vergonha de pedir apoio”, relata Cristina Figueiredo, da Cáritas de Bragança. Ainda hoje as instituições continuam a ­apoiar alguns destes estudantes universitários.

RENDIMENTOS INSUFICIENTES PARA O BÁSICO

Quase dois terços do apoio dado pela Cáritas nestes dois anos destinaram-se a pagar rendas. E 26% do montante atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa às famílias em 2021 também foi aplicado em rendas, quartos e pensões. Consultas médicas e medicação são outras das despesas básicas que nem todas as famílias conseguem pagar, incluin­do idosos com pensões baixas. A pandemia fez disparar em 33% o número de beneficiários do programa Abem, que se destina a pagar medicamentos prescritos a quem não os consegue comprar. O projeto da Associação Dignitude abrange agora 28 mil pessoas e a grande maioria deixava de pagar outras despesas para poder comprar os medicamentos. Os transportes são outro problema. Em Viseu, que assistiu a um alívio das dificuldades em 2021, a realidade parece estar agora a agravar-se. “As pessoas retomaram os seus empregos, mas nota-se um aumento do custo de vida, por exemplo nos transportes. As que trabalham a uma certa distância de casa são obrigadas a usar carro, porque a rede de transportes públicos não permite equilibrar horários. E as que fazem uma centena de quilómetros diariamente dificilmente conseguem agora suportar a despesa”, afirma Felisberto Marques, diretor da Cáritas de Viseu. “Além disso, vemos aumentar os pedidos de ajuda com rendas, medicamentos, luz e gás.”

CONTAS POR PAGAR E ENDIVIDAMENTO

Para muitas famílias, a pandemia deixou um peso acrescido: despesas por pagar. Há quem tenha já pedido planos de fracionamento de dívidas, como rendas ou contas da luz e telecomunicações em atraso, juntando agora a prestação em atraso às despesas correntes. “Basta pensar como é que um reformado com €400 de pensão consegue pagar a renda, os medicamentos, luz, água e gás, além das compras no supermercado”, lembra Natália Nunes, diretora do Gabinete de Proteção Financeira da Deco, que apoia pessoas endividadas. Quase 70% das famílias que recorreram aos serviços este ano estão a trabalhar. “E mais de 20% têm rendimentos até ao salário mínimo nacional, ou seja, menos de €705.” O principal motivo para as dificuldades atuais destas famílias é a diminuição de rendimentos, “seja de trabalho informal que deixou de existir, das horas extraordinárias que não foram recuperadas ou dos negócios que encerraram e que não só deixaram de ser fonte de rendimento como agora significam um aumento de dívidas”, descreve a especialista da Deco.

POBREZA PERSISTENTE

De crise em crise, há sempre uma franja da população que não recupera, dependendo de ­apoios sociais para subsistir. Todas as instituições lidam com esse lado persistente da pobreza, que exige uma atenção particular, frisa Ana Soeiro, da Cáritas de Beja. “Era preciso trabalhar as competências pessoais e sociais destas pessoas para lhes permitir quebrar o ciclo e ver a vida por outro prisma.”