10.1.23

‘Doentes’ vão às urgências para comer

Vera Lúcia Arreigoso, in Expresso

População simula doenças em hospitais. À fome junta-se a solidão: “Há quem peça para ficar internado”

Não são muitos, mas a sua presença não passa despercebida: são utentes que vão às urgências para receber comida, e não tratamento. A procura de refeição gratuita nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é nova nem mesmo expressiva, mas é regular, e os profissionais estão atentos, pois a crise económica que se avizinha prenuncia um agravamento deste fenómeno.

Relatos de equipas da urgência em diferentes pontos do país permitem traçar um perfil da procura social nos serviços hospitalares, apenas com a região Norte aparentemente menos exposta. Na generalidade, os utentes que vão ao hospital para comer não são propriamente idosos, na triagem fazem queixas gerais e sem gravidade e tendem a permanecer em observação até à distribuição de comida, seja almoço ou jantar. Algumas unidades têm já pessoas sinalizadas, dada a regularidade da comparência e do comportamento.

“Estão identificados, pelo menos, três casos que uma a duas vezes por mês recorrem a esse ‘expediente’. Normalmente vêm à hora de almoço e antes de terem alta pedem uma refeição”, descreve a equipa do Hospital de Portalegre. E o cenário é quase igual nas urgências de Castelo Branco: “A situação sempre existiu, principalmente nas horas de almoço, assim garantindo uma pequena alimentação quente enquanto aguardam pelo atendimento, exame ou tratamento.” Por agora, acrescentam os responsáveis, “não há grande aumento em relação ao histórico”

ADMISSÕES

4,7%

das camas nos hospitais públicos são ocupadas por internamentos inapropriados, revela a associação dos gestores hospitalares. Na maioria dos casos, são idosos à espera de vaga nos cuidados continuados

Também histórica é a procura de comida no Hospital de São José, no coração de Lisboa, “zona da cidade onde é ainda mais visível”. A administração explica que “uma pequena percentagem de atendimentos a que são atribuídas pulseiras verdes pode estar relacionada com a necessidade de uma refeição”. Embora “sem contabilizar esses casos, dado que não é essa a razão por que se apresentam aos cuidados”.

A equipa do São José explica que, “de forma geral, os utentes habituais frequentadores das urgências, nomeadamente sem-abrigo, não se queixam diretamente de fome”. Ao invés, falam em “problemas dermatológicos ou dores corporais, por exemplo, quase sempre sem gravidade, e há igualmente relação estreita com alcoolismo”. E acrescentam: “São casos sociais significativos na área da cidade que é servida pelo Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Central e aos quais se procura dar resposta, ainda que não estejamos vocacionados para este tipo de assistência.”

A muitos quilómetros de distância, o Hospital de Beja tenta igualmente encaminhar quem entra desencaminhado na urgência: “As equipas percebem o padrão de comportamento e identificam as pessoas. Depois sinalizam os casos para o serviço social do hospital, que procura soluções nas instituições da comunidade ou junto dos serviços sociais da área de residência.”

No presente, a unidade diz “não ter ninguém nessa situação, mas, sim, acontece haver utentes, poucos, cujo propósito quando se deslocam ao hospital é procurar alimentação e conforto”. Ou seja, “pessoas que procuram a urgência com o único propósito de receber alimentação e ou passar a noite”. A procura de companhia é, além da fome, outra das carências que leva muitos utentes, sobretudo idosos, ao hospital.

“Temos a clara noção de que há doentes que aqui vêm para alimentação e companhia. Fazem queixas que não o são verdadeiramente e vão ficando. Ainda recentemente tivemos um doente que comeu a sopa sofregamente e logo depois se foi embora”, diz um elemento de enfermagem do Hospital Amadora-Sintra.

“Alguns são doentes crónicos e até já os conhecemos. Vêm porque têm medo de estar sozinhos e alguns, já com pedidos para vagas em cuidados continuados ou lares, até pedem para ficar internados até serem chamados”, afirma a enfermeira-chefe da urgência, Maria Luísa Ximenez. O sentimento de solidão também já foi diagnosticado pelos profissionais do Centro Hospitalar do Médio Tejo, com as unidades de Abrantes, Tomar e Torres Novas: “O que se nota mais são as visitas, sobretudo à noite, por motivos de solidão. Não é algo que se tenha agravado, sempre existiu. Tal como pela comida.”

ASSISTENTES SOCIAIS ACOMPANHAM

Em Gaia e Espinho a procura social tem sido menos notada. “Os profissionais indicam não haver esse tipo de casos há algum tempo. No entanto, o enfermeiro-chefe da urgência salienta que há muitas organizações não-governamentais em redor cujo objetivo é providenciar refeições a pessoas necessitadas, assim como é prática comum na cafetaria a oferta de uma sopa a alguns utentes”, explica a administração do centro hospitalar. Quem precisa de comer pode encontrar uma solução igualmente gratuita sem ter de se disfarçar de ­doente a precisar de atendimento urgente.

“Sabemos que existem situações, mas são pontuais. Quando são identificadas, o serviço social faz o encaminhamento para estruturas na comunidade ou para avaliação da saúde mental”, garante Júlia Cardoso, presidente da Associação dos Profissionais de Serviço Social. “Na comunidade há serviços, e sempre que uma pessoa vai à urgência por razões que não são clínicas houve uma falha, desde logo na articulação com as várias respostas.”

A crise poderá agravar a procura dos hospitais por fome ou solidão, mas, para já, os administradores estão só atentos. “Há referência a casos, que sempre existiram, mas não temos a perceção de que seja um fenómeno em crescimento”, justifica Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.