27.4.23

Madalena não quer ser activista, mas conta a violência doméstica na primeira pessoa

Bárbara Wong, crónica, in Público



Cronista no PÚBLICO há três anos, Madalena Sá Fernandes publica Leme, o seu primeiro livro, um regresso a uma infância dificil e uma catarse que a liberta para escrever ficção.


É a primeira entrevista que Madalena Sá Fernandes dá na vida, confessa. O motivo é o seu primeiro livro. Chama-se Leme e é uma “narrativa que não deixa pedra sobre pedra nos pilares da resiliência de uma criança subjugada ao negro poder do seu padrasto”, anuncia a editora Companhia das Letras. É sobre violência doméstica e é escrito na primeira pessoa.

A autora que estudou Literatura e teve uma agência de redes sociais não se quer tornar numa voz activa em defesa das vítimas de violência doméstica, aliás, não quer ser vista como vítima. “O meu objectivo nunca foi fazer-me de vítima ou que tivessem pena de mim. Era uma questão de contar, da narrativa”, justifica. Mas reconhece que escrever foi catártico. Madalena Sá Fernandes, que escreve quinzenalmente no PÚBLICO, começou por desenvolver dois romances, no entanto, havia uma personagem que, em ambos, se sobrepunha sempre — “como se os meus traumas estivessem a impedir-me de escrever sobre qualquer outra coisa”. Acabou por lhe dar voz.


O título foi a primeira coisa a surgir. Era também o título dos dois primeiros textos que escreveu. “O leme simboliza a mudança na vida.” Vendeu a empresa e decidiu “pegar no leme”, dedicar-se apenas à escrita. “Por agora, está bem assim.”


Para escrever, leu muito. A prémio Nobel francesa Annie Ernaux foi “fundamental, na questão de usar a própria vida como material de escrita”. As italianas Elena Ferrante e Natalia Ginzburg e a britânica Virginia Wolf foram “muito importantes no ponto de vista feminino e de textos em que contam as suas próprias experiências”, contextualiza. O título chega às livrarias na próxima segunda-feira, dia 1, e é lançado a 12, com apresentação de Gonçalo M. Tavares e Tânia Ganho, em Lisboa.

No livro escreve que o seu psicanalista lhe disse para “escrever sobre o que as pessoas vivem e não contam”. Precisava de escrever este livro, que é tão pessoal?
A psicanálise é contarmos a nossa versão da história. O tempo inteiro estamos a contar-nos a nós próprios e isso é fundamental para ganharmos a nossa voz. Este livro teve essa função de resgatar a minha voz e contar a minha versão da história. Eu falava sobre as histórias que tinha na cabeça e o meu psicanalista dizia-me que enquanto eu não falasse sobre o que lhe contava, que não ia resultar. Um dia, hei-de escrever outras histórias, mas tinha de começar por esta, que seria a mais forte e a mais importante para mim. O livro tem uma função psicanalítica.

É um trauma que nunca estará resolvido?
Vai ser uma coisa que me acompanhará para sempre, nesse sentido nunca estará resolvido, mas eu pude mudar o leme e ganhar a minha voz, reconstruir a minha voz e apropriar-me da minha história.

É uma história que pode ajudar outras pessoas?
Eu não tenho essa pretensão, de todo. Quando escrevi, a minha preocupação era escrever um livro. Eu estudei Literatura e era uma questão literária. A literatura pode ajudar, tem-me ajudado a mim, bastante, mas este não é um livro de auto-ajuda. Não tenho o propósito nem a missão de querer ajudar alguém. Pode acontecer, pode accionar gatilhos ou acordar feridas a outras pessoas, mas ajudar alguém não é o meu objectivo. Na verdade, foi até um pouco egoísta.

Mas foi catártico?
Sim, bastante. De certa forma, foi terapêutico para mim. Eu queria escrever um livro, sempre foi o meu sonho. Acabou por ser este o livro.

Muitas vezes a violência doméstica está associada à pobreza, mas o que o seu livro mostra é que acontece também nas mais favorecidas...
Há pessoas a passar por violência doméstica em extrema pobreza, o que é infinitamente pior. Este é um tema transversal. É uma história que acontece num meio de classe mais elevada, mas nem por isso deixa de ser duro e traumático. Mesmo os privilegiados financeiramente podem viver coisas destas.

Porque não conseguem as vítimas sair de uma relação violenta? Por dependência, seja ela económica ou afectiva, mas também por medo?
Há a questão da dependência financeira, mas a maioria das vezes há dependência emocional. Eu não quero ser uma activista, só sei falar sobre o que vivi e tenho medo de dizer coisas que não estejam correctas. Em termos de activismo, não me sinto muito preparada.

É inevitável uma vítima na infância acabar por ser na idade adulta?
Não sei se é inevitável, mas é a questão do “estranho familiar” [conceito desenvolvido por Freud], do repetirmos aquilo que nos é familiar, porque a linguagem do que nos ensinam sobre o que é o amor na infância é a que nós vamos buscar em adultos. Não acho que seja uma fatalidade, mas há uma espécie de um íman, de alguma coisa que nos atrai por nos ser tão familiar.

Além da escrita, a leitura também a ajudou, desde pequena a sobreviver a esta experiência?
Sem dúvida que a escrita e os livros me ajudaram a perceber que eram um lugar seguro, um sítio aonde podia ir, que me mostrou outras vivências — umas piores, o que me ajudou a relativizar a minha; outras melhores, que me ajudavam a sonhar e a fantasiar. Sempre foi um lugar de fuga e de encontro para mim, tanto a escrita como a leitura.

E escrever ajudou a resolver alguma coisa?
Resolver, acho que não. Inicialmente, nas consultas de psicanálise, ia com essa ideia de resolver, como se fosse um problema matemático, mas não, porque não é para resolver, mas para dar nome ao sofrimento. Nomear é muito importante. Toda a gente tem angústias, sofrimentos, e nomear é fundamental, é importante para nos apropriarmos mais da nossa história.