26.4.23

Roupa que fala, roupa de combate

Sara Dias Oliveira, in Notícias Magazine



O vestuário não é um simples adereço que tapa a pele. Nunca foi, nunca será. Os corpos são transmissores de mensagens, formas de expressão - diz-me o que vestes, dir-te-ei quem és. Ontem, como hoje, como amanhã. Peças símbolos de resistência, modos de ser, maneiras de estar. A moda que não sai de moda.


Deem-me tempo e eu dou-vos uma revolução”, dizia Alexander McQueen, estilista britânico que revirava a moda do avesso, mostrando suas tripas e entranhas, numa exibição tantas vezes teatral, o feio que podia ser belo, o belo que podia ser grotesco. McQueen abriu caminhos e deixou lastro. Jean Paul Gaultier, estilista francês, l’enfant terrible, disse para quem o quisesse ouvir: “O meu design não é sobre a minha própria fantasia, é mais sobre aquilo que eu sinto que as pessoas querem e sentem”. Desafiou o sistema, desmontou-o, provocou-o, e questionou, tantas e tantas vezes, de tantas e variadas maneiras, estereótipos, clichés, códigos, tradições. Saias para homens e aquele corpete de cones pontiagudos que Madonna exibiu ao Mundo, em palco, todo o poder e toda a força da mulher condensados numa peça de roupa que não era apenas uma peça de roupa. É moda, é intervenção. É moda de intervenção.


A roupa de Vivienne Westwood, famosa estilista britânica, que morreu no fim do ano passado, era também ativismo. T-shirts de resistência contra a propaganda instalada, em defesa do feminismo, da proteção do Planeta, a essência do punk, o ser quem se é, não importa o que quer que seja. Ela marcou um tempo na indústria, na moda, na forma de vestir, na maneira de pensar.


Nos Estados Unidos da América, os gorros cor-de-rosa tornaram-se um símbolo do ativismo feminista, coloriram cidades norte-americanas em diversas marchas, do movimento #MeToo, contra a misoginia de Trump, quando era presidente, de defesa pelos direitos das mulheres, pelos direitos LGBT, em respeito pelos direitos humanos. Uma peça que não é um mero acessório.
Dino d’Santiago escreve frases nas suas t-shirts. A roupa como lugar de fala. “Não é sonho nenhum.” “Nossos corpos também são pátria.” “Preto estás na tua terra.” São frases, são orações. São mensagens. Vestiu a t-shirt “Preto estás na tua terra” nas celebrações do 25 de Abril do ano passado, quando cantou no jardim da residência oficial do primeiro-ministro. “É uma oração para mim: lembra-te, tu estás na tua terra, não tens de reclamar este chão que este chão também é teu. Não quero que o meu filho cresça com ‘preto vai para a tua terra”, disse o cantor na entrevista que deu à NM. Roupa com carga semântica, com carga simbólica. Para si e para os outros.


Miguel Januário, artista visual, designer gráfico, autor do projeto de intervenção artística MaisMenos, juntou vários ingredientes na conceção da campanha “O discurso de ódio não é argumento”, da Rede Europeia Anti-Pobreza. Chavões, preconceitos, discriminações, ofensas. O país estava confinado, o populismo não dava tréguas, decidiu criar um objeto vestível que diversas figuras públicas, e não só, partilhassem no mesmo dia à mesma hora nas redes sociais – cartazes nas ruas com toda a gente em casa não funcionariam, pelo menos numa primeira fase. O artista tinha uma ideia clara na sua cabeça. “É preciso dar a volta ao texto”, diz. Dar a volta ao texto tornou-se a hashtag mais usada para difundir as frases que deram corpo à campanha.

“Se tem algum jeito, uma pessoa ser aquilo que é.” “Toda a gente sabe que o lugar da mulher é onde ela quiser.” “Se vêm para cá têm é que respeitar e ser respeitados.” “Vai mas é para a tua terra, aqui não há lugar para o racismo.” “Faziam bem era se fossem trabalhar com ordenados dignos.” Frases escritas a duas cores para marcar a transição entre chavões e reflexões. Entre o ataque na primeira parte e o respeito na segunda. Miguel Januário sabia o que queria. “Joguei com vários elementos, peguei em vários temas, naqueles chavões, para tentar tirar o tapete debaixo dos pés com uma certa ironia”, revela. Preconceitos que batem de frente com a realidade. O ódio a tropeçar em si mesmo. A futilidade a cair por terra.

A campanha tornou-se viral, artistas com as mensagens ao peito e no peito – Capicua, Carlão, Surma, Salvador Sobral, Gisela João, Sara Barros Leitão, Marco Paulo, Selma Uamusse, Valter Hugo Mãe, Ágata, Pedro Laginha, o estilista Miguel Vieira, o chef Rui Paula, o médico Gustavo Carona, a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, e muitos outros associaram-se à causa. Muitos pedidos de t-shirts e as frases depressa voaram para outros objetos: pacotes de açúcar, sacos de pano, cartazes, múpis.

“Com humor e inteligência, e alguma acidez, tentar destruir preconceitos, conseguir dar a volta ao texto”, reforça Miguel Januário. Não num desfile, não numa montra de uma loja, não debaixo de holofotes, não em corpos de modelos esguios. Na vida real. A roupa como objeto de alerta social. De intervenção. De resistência.
A linguagem, a expressividade, a mensagem

Na sua última coleção, Miguel Vieira inspirou-se na história de amor de Jacques Brel, na sua música-poema “Ne me quitte pas”, não me deixes, o tema da coleção do próximo outono-inverno. As suas peças desfilaram no Portugal Fashion, numa antiga garagem de automóveis na Rua de Latino Coelho, no Porto, no mês passado, ao som dessa canção. Fatos, vestidos, camisas, calças, cetim, seda, algodão reciclado, pura lã virgem, formas ora mais estruturas, ora mais fluidas, preto caviar, branco-neve, cinzento glaciar, amarelo vibrante. Em todas as peças, um detalhe que não se vê do lado de fora, que está no interior dos fatos, das camisas, dos casacos, dos vestidos, nos bolsos das calças, o tema escrito: “Ne me quitte pas”. Do lado de dentro.

“Todos nós, desde miúdos, passámos, pelo menos uma vez na vida, por isso, alguém nos deixou, alguém nos abandonou, um namorado, uma namorada, um homem, uma mulher.” O designer de moda amplia o título da música que colou à sua roupa como uma mensagem que ganha vida em diversos contextos. “Não me deixes, não me abandones, não esqueças a minha coleção, não esqueças de comprar o que é português, não deixes de beijar e de abraçar. Tento sempre passar a mensagem com pequenos detalhes”, afirma.

Paula Guerra, socióloga, professora e investigadora na Faculdade de Letras e Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, acompanha a evolução da moda, suas camadas e cambiantes, transformações, modos de estar, modos de ser. “A roupa sempre falou.” Não é de hoje, não é de agora, não é lá fora, também é cá dentro, basta recordar os movimentos hippies, os punks, os teddy boys, os rockabillies, até às recentes manifestações pelo bem-estar do Planeta, dos alertas dos perigos das alterações climáticas e a defesa da sustentabilidade, às greves dos professores, às t-shirts que mandam recados, que transmitem opiniões, que vincam posições. “Os corpos não são meros repositórios de roupa”, sublinha Paula Guerra. “A roupa, os acessórios ou o calçado têm uma expressividade social imensa, tiveram sempre.” De pertença social, de origem cultural, de status económico, de filiação musical. De outras e tantas formas de estar e de sentir.

Uma cor não é apenas uma cor. Uma cor é muito mais do que uma simples cor. É código, é mensagem, é história, é narrativa. A mais recente coleção de Katty Xiomara é vermelha, totalmente vermelha, apresentada no Grande Hotel do Porto, no mês passado, no âmbito do Portugal Fashion. O vermelho não será por acaso. Não é, claro. A designer de moda explicou o conceito. A escolha da cor “representa o Deus da Guerra, oferece coragem aos guerreiros e celebra a vitória”. Peças graciosas, femininas, materiais diversos, vermelhos ou pintados de vermelho. O vermelho de duas faces. O vermelho e sua dualidade. “Exprime vida, mas também morte, transmite alegria, mas também violência, revela ódio, mas também amor”, frisou. “O vermelho arde e queima, mas também estimula e vibra. É uma cor sem meias-medidas, faz-nos sentir bem ou mal de forma profunda”, acrescentava, na altura, a designer de moda com ateliê no Porto. A sua roupa é um mergulho nesses sentimentos, fortes e intensos, nesses contrastes.

A moda é uma linguagem. Cristina L. Duarte, socióloga, investigadora, interessada nas formas de cultura urbana, pela moda em particular, autora de vários livros na área, professora auxiliar convidada da Universidade da Beira Interior, lembra que a semióloga Patrizia Calefato vê na moda uma linguagem. “A sua pesquisa coloca-a na interseção dos estudos de moda, dos estudos feministas e da sociologia.” O corpo vestido, na aceção da Calefato, “é um sujeito ‘em processo’, que se constrói através do aspeto visível, do ser/aparecer no mundo com todas as suas subjetividades”. O corpo compreendido como performance. “Isto é, como uma construção aberta da identidade material, mas também como dimensão mundana da subjetividade.” Cristina L. Duarte diz mais: “Corpo da afirmação política”. “A frase das feministas ‘o pessoal é político’ cai aqui mesmo bem”, sustenta.

Para Miguel Januário, a roupa é mais do que um adereço, tem sumo, tem semântica. “O corpo é um dos principais elementos de intervenção e de passar mensagens. Os nossos corpos são, muitas vezes, a primeira forma de expressão. O que vestimos transmite muito de nós. O corpo é uma tela e a roupa também é uma forma de dizermos o que vai cá dentro”, refere.
Pensar, vestir, agir

“Somos, muitas vezes, outdoors ambulantes das marcas que conseguem criar um estatuto de graça”, observa Miguel Januário. O seu projeto MaisMenos surgiu para questionar essa força das marcas que colam os seus nomes e logos no vestuário que criam, não só nas etiquetas do lado de dentro, também de fora e de modo bem visível.

“As marcas criam um estatuto social que nos define, que nos inclui ou que nos exclui”, repara. O designer esmiúça essas questões, tenta secar um pouco essa publicidade que invade o que se veste e procura outras formas de dizer. “Criar mensagens políticas, muito mais honestas, muito mais fortes”, vinca. De várias formas, entre elas, com mensagens junto ao peito que mostram o que afeta ou preocupa uma sociedade, um país, o Mundo.

No ano passado, Katty Xiomara espremeu a definição habitualmente atribuída à palavra propaganda, palavra que escolheu para batizar a sua coleção primavera-verão deste ano. Não propaganda como uniformização social, mas propaganda como forma de propagar a liberdade de pensamento, o desejo de pensar. A designer de moda pegou num conceito e esvaziou-o de uma carga pré-concebida. Na altura, explicou o processo e a sua vontade: antagonizar a ideia de propaganda “associada à adulação dum indivíduo, neutralizando todos os outros através da uniformização social, que anula e penaliza o pensamento individual.” Com a sua roupa, deu a volta à palavra.

“Propaganda”, apresentada no exterior do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, em outubro do ano passado, é uma coleção feminina, colorida, com folhos, franzidos, rendas e laços, tecidos translúcidos, com o tule em destaque.

Para Paula Guerra, colocar a roupa num patamar de futilidade não faz sentido. “No fim da Segunda Guerra Mundial, a roupa e a moda tornaram-se mercados incontornáveis de consumo”, recorda. A roupa diz muito mais do que possa parecer à primeira vista. “Há um lastro cultural associado à roupa. Umas meras calças de ganga não são umas meras calças de ganga”, acrescenta.

“Cada vez mais, a roupa é transmissora de mensagens.” A arte e o ativismo de mãos dadas, as mensagens em desfiles que marcam momentos, a roupa como comunicação, como política. “A moda como opinião, de intervenção e transformação societal, a roupa como combate”, descreve Paula Guerra. Nunca como um mero adereço sem a mínima importância, sempre como transmissora de mensagens, mesmo sem palavras, mesmo sem desenhos.

A roupa tem poder, a moda reflete os tempos que vivemos. Não poderia ser de outra forma. Miguel Vieira reconhece essa força. O poder que tem nas mãos de criar, de transmitir alguma coisa, de mostrar ao Mundo o que pensa sobre o que quiser. “Tenho esse ‘poder’ na mão, de conseguir passar a mensagem que pretendo através da roupa.” Um trabalho, uma missão.

Cristina L. Duarte tem uma t-shirt que diz “Everybody should be feminist” (toda a gente deve ser feminista), de uma cadeia de pronto a vestir, e um colar com a palavra: feminista. “Como em tudo o que diz respeito ao consumo, usa quem pode, mas também quem é”, realça. Por várias razões, por uma questão de autenticidade. “Talvez se possa falar de um lugar de cidadania e mesmo civilizacional”, comenta a socióloga. A roupa que fala. A moda que não sai de moda.