Por Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Na sala de uma associação no Porto, deitam-se contas à vida. As medidas introduzidas pelo PEC vão piorar o dia-a-dia de quem vive em pobreza extrema
É uma espécie de assembleia. As pessoas sentadas nas cadeiras encostadas às paredes formam um rectângulo. Nenhuma cadeira sobressai. Quem nelas se senta está aflito com o decreto-lei que hoje entra em vigor e que altera as regras de acesso às prestações sociais não contributivas e traz outras mudanças ao Rendimento Social de Inserção (RSI), introduzidas no quadro do Plano de Estabilidade e Crescimento. (PEC) Alguns temem ficar na rua.
Estamos no velho edifício da Qualificar para Incluir (QPI), uma associação de solidariedade social que acompanha mais de 400 beneficiários no Porto, distrito líder nesta matéria - concentra 126.793 beneficiários, de um total de 395.341 (números de Junho). Duas mudanças, sobretudo, preocupam os presentes: muitas famílias vão ver a prestação fixa baixar; e acaba o apoio complementar, que podia ir até 1137.12 euros anuais.
Fátima, cabelos brancos, penteados para trás, toma a palavra. Tem 62 anos, fibromialgia, osteoporose; e um filho bipolar. Recebia 189,52 euros e o filho outros 189,52. Este mês, lá em casa, entram 322,18 euros em vez de 379,04 de RSI. É que, com a nova lei, o rapaz tem de ficar colado à mãe, já que não tem autonomia financeira e vive com ela. E os adultos, que até agora tinham direito a 189,52 euros como o titular do processo, passam a receber 132.
O decreto-lei que harmoniza as condições de acesso toma por referência o complemento solidário para idosos, a mais recente prestação social de combate à pobreza. E isso tem implicações no conceito de agregado, nos rendimentos considerados e na definição de uma capitação entre as estipuladas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
Processos vão ser revistos
Agora, conta tudo. Inclusive a casa que serve de morada à família, uma bolsa de estudo atribuída a um filho menor ou um apoio em espécie, como a habitação social. E, no RSI, terminam o subsídio de gravidez, o subsídio para o primeiro ano de vida, a majoração a partir do terceiro filho. Amanhã, os serviços de Norte a Sul começam a rever os processos.
A mulher ergue a voz: "Já devo 300 euros na mercearia. Já vendi tudo o que havia de bom em casa. Pedir emprego tenho pedido, mas quem me dá? Peço um emprego de telefonista e dizem-me que 38 anos é o limite e que é preciso carta de condução. Uma carta para telefonar?" Pior será em Janeiro. Como foi aprovado a um ano, até lá Fátima ainda receberá 89 euros por mês de apoio complementar para medicação. Depois, não o poderá renovar.
Está revoltada: "Diminuem os apoios e aumentam a luz, tudo. Como é que se pode pagar o que se deve se não se tem onde ir buscar." Sandra, uma rapariga morena, de cabelos compridos, castanhos, também não sabe: "Gasto 90 euros por mês na farmácia com o meu filho epiléptico e com a minha filha asmática."
De repente, as vozes atropelam-se nesta sala assombrada por doenças. Cidália Queirós, directora da QPI, propõe: "Vamos escrever a história de cada um e mandar para o primeiro-ministro." E Sandra interrompe-a: "Mas é para o José Sócrates, não é para o Paulo Portas [líder do PP]. Esse é contra o RSI." As vozes tornam a atropelar-se e a socióloga tenta repor a ordem: "O que acho é que cada um deve explicar a sua situação de forma muito clara."
A estigmatização
Alguns estão a esforçar-se para (re) entrar num mercado de trabalho que sentem repeli-los, sobretudo em distritos como o Porto, onde a desindustrialização dói. Joaquina, uma mulher elegante de 37 anos, oferece-se como exemplo. Começou a trabalhar aos 15 anos em fábricas que já fecharam. "Sou beneficiária de RSI há cinco anos. Tenho vergonha. Muita gente pensa que por ser beneficiária de RSI sou malandra, mal-educada, porca."
Faz em adulta o que a vida não lhe permitiu fazer quando era menor. Tem aproveitado para se escolarizar, para se profissionalizar. Fez um curso de técnicas de instalação de hardware que lhe deu equivalência ao 9.º ano e está a fazer um curso de instalação e reparação de redes que lhe dará equivalência ao 12.º. "Estou a lutar, mas é difícil quando me querem tirar o tapete!"
Vive com a filha de 15 anos e com o filho de cinco. Recebe 379 euros de RSI, 86 de abono, 250 de apoio complementar para a renda. O apoio complementar esgotou em cinco meses e o caso deveria transitar para a Acção Social, destinado a apoiar toda a população carenciada. A QPI, a fiadora, já pagou a renda deste mês, porque a Segurança Social não respondeu. Dizem-lhe que não há dinheiro. Dizem-lhe que vá para um dos albergues, já cheios de sem-abrigo. "Como é que pode haver inserção sem habitação digna?", questiona Cidália Queirós.
Não foi a única. Outros ouviram igual recomendação. José recebia 200 euros para pagar a habitação que ocupa com a filha de 12 anos. Já acabou o apoio complementar e da acção social nada. "A solução, da segurança social, é a rua ou o albergue." Apesar dos seus 38 anos, não sabe ler nem escrever: está há dois anos na alfabetização. Como sobreviver com 279 euros de RSI e 43 de abono?
"Como faço sem o apoio?"
Helena, uma mulher loura, pálida, revolve-se na cadeira: "Tenho dois filhos, recebo 421 euros de RSI e pago 300 de renda. Como faço sem o apoio complementar de 250? Monto uma tenda à frente da câmara." Não falta aqui quem, como ela, pense que a saída é a habitação social. Só que a lista de espera vai longa em câmaras como a do Porto. Quanto tempo aguentará? "O tempo que for preciso até resolverem a minha situação. Não vamos para um albergue!"
Os casos dramáticos sucedem-se. Não só aqui dentro. Lá fora. No distrito, desponta um movimento, ainda um tanto clandestino, de auto-intituladas "assistentes sociais que realmente se importam". Em diversas partes, técnicas recolhem os casos mais críticos para remeter à Segurança Social. Afligem-se com os beneficiários, mas também temem pela sua segurança.
Não há aqui dentro quem não veja nesta mudança uma ofensiva que tem a ver com a própria imagem do RSI. Anabela, a mulher que agora toma a palavra, já ouviu tantas vezes dizer: "Vou deixar de trabalhar e viver do RSI!" E a todos responde: "Fazemos uma coisa prática! Você vem para minha casa e fica com o meu RSI e eu vou para sua casa e fico com o seu emprego!"
Fátima propõe: "Acho que devíamos ir todos à Assembleia da República." E Anabela atiça: "Temos de nos unir. As pessoas têm de ver que estamos a lutar para ter condições. Muita gente recebe RSI e tem vergonha, mete-se dentro de casa. Nós temos de sair de casa, senão nunca vamos mostrar que estamos no RSI porque não temos emprego. Estou no RSI há três anos. Toda a vida trabalhei!"