Helena Teixeira da Silva, in Jornal de Notícias
Portugal tem 50 mil ciganos e um projecto piloto de integração. Visita a três comunidades revela que são dependentes, mas aceites. Há uma excepção.
Vamos chamar-lhe Carlos, embora seja outro o nome dele. E admitir que vive em Lisboa, embora não viva. E que tem 40 anos, embora não tenha. Carlos é engenheiro, trabalha numa empresa conceituada e repleta de quadros superiores.
Aparentemente, é como eles: licenciatura cumprida com sucesso no devido tempo, carreira profissional em linha ascendente, salário condizente. Conduz um carro topo de gama, telemóvel de última geração, indumentária trendy. É alto, musculado e moreno - e cigano.
Ser cigano é o seu segredo. Esconde a identidade como quem encobre um crime que não prescreve. E todos os dias acorda com medo de ser descoberto. Às vezes engole em seco, mas nunca escorrega. "Sei o que pensam, ouço os comentários. Não posso arriscar perder tudo só porque as pessoas nos metem a todos no mesmo saco". Não pode arriscar perder o respeito dos pares e, mais ainda, de quem lhe deve obediência. "Não posso sobretudo ser considerado culpado se alguma coisa falhar. Porque eu sei que se existe um cigano, a culpa é do cigano".
A frase soa a queixume, mas não é uma queixa. O discurso é de uma calma quase dormente, território onde por certo habitarão as consciências sem peso. Carlos não tem vergonha de ser cigano; tem apenas a consciência de que não vive num mundo perfeito. "Num mundo perfeito, as pessoas não achariam que os ciganos são todos ladrões ou preguiçosos ou criminosos. Tentariam saber mais sobre a nossa cultura e se não conseguissem entendê-la, no mínimo respeitá-la-iam. A parte nunca seria tomada pelo todo". Ele não teria de fazer de conta.
Carlos não tem a etnia que tem. E a única pessoa a saber é a namorada de muitos anos. "Contei logo no início, não podia trair um pilar fundamental de uma relação, que é a confiança". Correu bem. Mas na faculdade nunca ousou a confissão. "Era estranho ver os colegas a defenderem as minorias nas aulas e depois a condená-las cá fora". Hipocrisia que se habituou a assimilar.
Em Portugal existem 50 mil ciganos. Mas como a Constituição não permite a identificação da etnia no Bilhete de Identidade, quantos existirão camuflados no medo do cutelo do preconceito?
No Bairro do Iraque
Em Carrazeda de Ansiães, concelho transmontano do distrito de Bragança, há um bairro, no topo de um monte, chamado Iraque. É um condomínio de casas amolgadas, paredes que são chapas de zinco, portas de lona, janelas de vento, telhados sustentados por pneus velhos. No Bairro do Iraque, assim baptizado por ter sido, em tempos, zona de exploração mineira, a vida é como a canta Jorge Palma, "um carrossel onde há sempre lugar para mais alguém". Vivem ali 78 ciganos, 19 famílias.
À entrada, a alguns metros de distância dessa cidade pré-fabricada, uma camião anuncia a letras vermelhas: "Fazemos transportes internacionais". O anúncio é o papel de parede da casa de férias do casal Esteves. José e Palmira, primos direitos, casados com amor e nove filhos, já lá vão quase 20 anos, fazem de anfitriões sem fazer perguntas sobre quem chega. "Desde que venha por bem...". Não vivem ali, estão ali de férias. Como quem sai de casa para o campismo. No caso deles, de um acampamento para outro. O que conta é o espírito.
Palmira, 35 anos, olhos azuis e cabelo claro, é mulher alegre, despachada, viva. Fala sem parar enquanto corta cenoura, batata e feijão verde para a sopa. Ainda não são dez da manhã, mas o dia começa cedo, que ali há muitas bocas para alimentar. Oferece o que tem. "Café? Chá?" Rodopia a saia na direcção das crianças. "Quem ainda não tomou leite?" Pede à filha mais velha para ver se é preciso mudar a fralda ao mais novo. E continua a tagarelar, a sorrir.
De olhos fechados, aquele esmero seria o de um lar comum. De olhos abertos, quando um oleado verde faz de tecto de sala e a terra de carpete, pergunta-se porquê. Porquê ali? Porquê assim? José Esteves, o marido, cabelo desenhado em onda para trás, recostado numa cadeira de plástico a fumar um cigarro, veste a camisa para a explicação. Uma espécie de preâmbulo à incursão que se seguia no Iraque. "Estamos aqui para fazermos um bocadinho de negócio nas feiras, temos uma barraca de tiro. Esta comunidade é pacífica, ninguém mexe no que não lhe pertence, não rouba, não trafica, nunca aqui houve zangas ou rusgas", garantiu. E, mais tarde, a assistente social da Câmara, Alzira Lima, confirmou. "Vivem do Rendimento Social de Inserção, às vezes são chamados para o trabalho no campo. Os homens tiram sempre o chapéu" depois de receberem permissão para lhe entrarem no gabinete.
O bom comportamento, no entanto, ainda não deu direito à integração que ambicionam, conceito difícil de definir, mas que se confere quando abrem as portas do coração. "Estávamos lá em baixo na vila, mas há sete anos fomos atirados para aqui. A GNR entrou-nos pelas barracas adentro e mandou-nos sair, uma afronta", indigna-se dona Beatriz, 44 anos, já o almoço havia sido digerido e a cozinha arrumada. A ela até lhe deram uma casa, mas desde que a filha lá morreu, queimada, perdeu a coragem de lá voltar. "Agora estou aqui, de Inverno não se aguenta o frio, de Verão não se pode com o calor. E é tudo tão longe." É outra vez como o Bairro do Amor de Palma, "uma zona marginal onde não há prisões nem hospitais, onde cada um tem de tratar das suas nódoas negras."
José Luís Correia, autarca recém eleito de Carrazeda, diz que não é bem assim. Saíram porque o terreno era particular, mas a Câmara disponibilizou-se para ajudar a comunidade. Colocou lá água e contentores do lixo. Recentemente, instalações sanitárias; a curto prazo, luz eléctrica. "Não temos a intenção nem o direito de mandá-los embora", assegura.
Paredes: um caso de sucesso
Longe dali, em Paredes, distrito do Porto, está edificada a comunidade onde José Esteves, quando não está de férias em Trás-os-Montes, vive, trabalha e é feliz. "Mudei muito no último ano", confessa. "Percebi que, para sermos aceites, também podemos ceder um bocadinho nas nossas tradições, sem que isso implique negar aquilo que somos".
O senhor Esteves, como o tratam, é funcionário da Câmara e tem um papel determinante na integração da comunidade, no âmbito do "Projecto Piloto Mediadores Municipais" lançado em 2009 pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI). "O projecto terá três anos de duração e o meu papel - é o mediador - é fazer a ponte entre a comunidade cigana e a sociedade, tanto nas iniciativas culturais como na resolução dos problemas", conta com orgulho. E com razão. Está tão entusiasmado que até decidiu escrever um livro. "Estou a fazer pesquisa, quero mostrar que existem muitas tradições e culturas diferentes dentro da mesma etnia. E que a nossa cultura é muito rica".
Hermínia Moreira, vereadora da Acção Social da Câmara, afirma que "ele é um exemplo notável". Rosário Farmhouse, do ACIDI, sublinha: "É uma inspiração". Os elogios ajudam a justificar os números: dos 15 municípios seleccionados para o projecto, Paredes, onde vivem 91 ciganos, é o que regista melhor desempenho: muitas parcerias com instituições, dezenas de actividades, centenas de pessoas a aderir às formações. O projecto culminará em 2012 com a construção de um novo empreendimento habitacional para a comunidade, que "não deixará de respeitar as características da etnia", explica a vereadora.
Este é o lado bom. O outro, mais discutível, é quando se entra no acampamento, mesmo no centro da cidade, mas igual aos outros todos. Ali é dona Teresa, língua afiada e ironia pronta, quem manda. "Vamos ter casas novas vamos, é já amanhã", atira logo para início de conversa. Aos 53 anos, parece mulher austera, não quer cá fotografias, desfia avisos em catadupa. Limpa as mãos ao avental, o suor da cara à camisola, poucos minutos depois revela-se avó babada, mulher prendada. Exibe mantas que faz com uma agulha. São arco-íris de bom gosto. "Já me ofereceram 50 contos por uma e não a vendi". Era do neto. "O resto ninguém compra, que isto está mau para todos." Vive como os outros, da prestação social do Estado. "Cada vez menos, estão sempre a cortar, qualquer dia não chega para comer".
Dona Teresa queixa-se do frio, das ratazanas da água que vai buscar todos os dias tão longe, mas não se queixa das pessoas da cidade. "Aqui, somos todos iguais".