Por Clara Silva, in ionline
O projecto da mascote da Expo 98 já acolheu 150 crianças que estavam indevidamente hospitalizadas
Num canto do labiríntico Parque da Saúde de Lisboa, a Casa do Gil parece uma escola durante as férias. O portão está trancado a sete chaves, não há miúdos no campo de futebol do recreio e só o Gil, o boneco que serviu de mascote à Expo 98, ali continua de braços abertos, sem ninguém para brincar. Quando tocamos à campainha o cenário é outro. No átrio há uma enorme árvore de Natal com bonecos feitos de rolos de papel higiénico e na parede há fotografias que lembram os tempos em que o edifício centenário mais parecia uma casa assombrada a precisar de obras. Ao longe ouve-se um barulhinho de crianças, nada comparado com uma escola à mesma hora complicada do lanche.
“Como agora só temos bebés até parece que são menos crianças”, diz Manuela Martins, a directora da Casa do Gil, que nos recebe à porta. A casa inaugurada em 2006, “o mais sonhado e difícil projecto da Fundação Gil”, pertenceu em tempos ao director clínico do Hospital de Lisboa e ao seu secretário, que habitava no primeiro piso. Agora tem capacidade para alojar 16 crianças dos 0 aos 12 anos e quatro pais ou responsáveis pelo menor. “A nossa função é a mesma da fundação [Gil]: reintegrar crianças que estão indevidamente hospitalizadas. As crianças têm de vir de um hospital nacional e estar lá apenas por razões sociais, não quer dizer que não necessitem de um apoio clínico, mas não têm de estar internadas.”
A Casa do Gil é um dos quatro projectos da Fundação Gil, que surgiu há 11 anos, logo após a Expo 98. António Mega Ferreira, então presidente do conselho de administração do Parque Expo, foi na altura convidado para fazer parte da comissão de honra de um congresso no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Foi aí que se apercebeu da existência de crianças com vários anos de internamento sem família ou sem condições para voltar para casa. “Aproveitámos então a mascote da Expo, por isso nascemos um bocadinho ao contrário.”
Nas paredes da Casa do Gil ainda há grandes relógios Swatch do tempo da Expo 98, já que a marca era uma das patrocinadoras. A Swatch chegou mesmo a lançar um relógio, o “Ursinhos”, para ajudar a construir a Casa do Gil. Um desses modelos está agora na casa de banho do segundo piso, semelhante aos balneários de uma pousada da juventude bem cuidada, daquelas que custa abandonar. Mas a Casa do Gil não tem nada de pousada e Manuela diz que o primeiro pensamento é mesmo o dia em que a criança se vai embora. “Por muito bom que o sítio seja, as razões pelas quais a criança aqui vem parar são as piores.”
O máximo de tempo que um miúdo esteve na casa foram 18 meses. “Isso acontece com crianças que moram longe, por exemplo nos PALOP. Se um dos miúdos precisa de três cirurgias, não vai estar sempre a ir para África e a voltar no dia seguinte. Isso acontece muito com crianças que têm lábio leporino.”
Até agora cerca de 150 crianças foram acolhidas na Casa do Gil. Neste momento são 11, mas algumas estão fora, na escola ou no hospital. “Tentamos sempre que as crianças façam uma vida o mais aproximada possível da realidade. Se moram em Algés, tentamos que vão à escola e ao hospital em Algés.”
Muitas das crianças são da Guiné ou de Cabo Verde. Carlitos, da ilha de Santo Antão, é um desses casos, “com um problema complicado [que Manuela não revela qual é] e que já foi e voltou várias vezes”. A mãe, Isaura, dorme ao lado do seu berço, mas são poucas as vezes que isso acontece. “No primeiro ano da Casa do Gil percebemos que 80% dos miúdos que ficavam pendurados no hospital eram dos PALOP. Os pais chegam a Portugal, largam-nos no hospital e desaparecem.” Mas há outras razões para ficarem “pendurados” no hospital: “Há famílias negligentes, outras maravilhosas, mas com condições de habitação péssimas...”
A directora da Casa do Gil (a administradora-executiva é Margarida Pinto Correia) compara-a com um ginásio. “Os meninos vêm para aqui treinar os músculos sociais”, explica Manuela. “Temos de lhes recuperar a vida e muitas vezes inventá-la do zero. E às vezes da família toda... Há pais que temos de legalizar, é preciso arranjar habitação social... Inventamos dinheiro todos os dias para isto.” Algumas pessoas costumam deixar brinquedos velhos e roupa suja. “Mas nós queremos dar dignidade a estas crianças. Estou numa luta para que no Natal tenham brinquedos novos. A Maria tem direito a dar um nome a uma boneca pela primeira vez e o Zé tem direito a montar o seu próprio carro.”