27.1.15

Pobreza, BES ou a ficção do dinheiro. Uma exposição em Lisboa

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

O Tempo e o Modo é simultaneamente uma exposição de arte e um projecto de investigação sobre a pobreza — a de hoje e a que ciclicamente atingiu Portugal nos últimos 100 anos. Para ver até 27 de Fevereiro, no Pavilhão 31 do Hospital Júlio de Matos.

Não por acaso o espaço escolhido para a exposição O Tempo e o Modo – Para um Retrato da Pobreza em Portugal foi um hospital psiquiátrico. A exposição, dedicada ao tema da pobreza, foi inaugurada há uma semana e decorre até 27 de Fevereiro, no Pavilhão 31 do Hospital Júlio de Matos em Lisboa.

Arte contemporânea e investigação juntam-se neste projecto pensado para deixar sementes de reflexão sobre a pobreza que ciclicamente atinge a sociedade portuguesa independentemente de o Governo ser de esquerda ou de direita, dizem os seus criadores.

Não por acaso também as obras criadas sobre o tema, por artistas contemporâneos, convivem neste espaço com documentos e imagens de arquivo, estampados numa parede transformada em linha do tempo, a partir de 1900, que mostra a Sopa dos Pobres de Sidónio Pais, as Marchas da Fome dos anos 1930 e 1940 ou as situações de pobreza extrema em Setúbal nos anos 1980.

Era importante “todo esse pontuar da história social e política” de Portugal estar aqui, diz Paulo Mendes, artista plástico e um dos criadores do projecto, juntamente com Emília Tavares, conservadora e curadora para a área de Fotografia e Novos Media no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, em Lisboa.

“Estamos a assumir uma posição política sobre o tema. É uma posição crítica perante o caminho errático que o país teve ao longo das últimas décadas e, em particular, dos últimos 20 anos”, acrescenta Paulo Mendes. “Embora a actuação deste Governo seja também ideológica, de desmantelar o Estado Social, e não de o defender, a situação actual é o resultado de muitos erros acumulados tanto à esquerda como à direita.”

Às obras, juntar-se-á também um livro, resultado de uma recolha de textos e investigação do historiador José Neves, do sociólogo Frederico Ágoas e da antropóloga Rita Sá Marques.

Simbolismo do espaço
O facto de a exposição ser num hospital psiquiátrico, e não dentro de uma instituição cultural ou do Estado, adquire um simbolismo próprio e representa mais um exemplo, como no passado existiram outros, de “obras elaboradas dentro deste tipo de ambientes” como “metáforas daquilo que era o Portugal contemporâneo”, diz Paulo Mendes. Como João César Monteiro e a sua figura do João de Deus que corria às voltas no panóptico do Miguel Bombarda, exemplifica.

A escolha de um pavilhão no Hospital Júlio de Matos pode ser lida como metáfora, a reflectir "alguns dos males" neste retrato de "uma espécie de país doente" – através das obras dos artistas Hugo Canoilas, Gustavo Sumpta, Maria Trabulo, João Tabarra, Pedro Barateiro, Margarida Correia, Renato Ferrão e Nuno Ramalho.

Uma das obras expostas por Nuno Ramalho cobre o chão da exposição com um mosaico (de uma figura de joelhos) feito com pequeninas moedas de um cêntimo de euro. “Este material desfaz-se no final da exposição e volta a entrar em circulação, e é isso que me agrada. Eu compro estas moedas, tiro-as de circulação e, no final, eles voltam a comprar-mas”, explica Nuno Ramalho que usou cerca de 900 euros, colocando cerca de 90 mil moedas no chão, também para falar do significado do dinheiro – ou da falta dele. “Temos aqui tudo e simultaneamente não temos nada. O dinheiro é uma bolha, uma coisa criada artificialmente que de facto não existe. Falamos de fluxos de dinheiro no mundo globalizado que habitamos e que não param, não se materializam em lado nenhum. Vemos o que aconteceu, por exemplo, com o BES.”

Realidade e ficção
O que aconteceu com o BES (Banco Espírito Santo), e antes ao BPN (Banco Português dos Negócios), é para Paulo Mendes um exemplo de uma “construção de realidades paralelas que não correspondem, muitas vezes, à verdade”. Essas realidades paralelas são construídas por políticos e governantes, repetidas por comentadores, muitas vezes ligados a um ou outro campo partidário, e assim perpetuadas na sociedade.

O artista fala de uma manipulação da realidade. “Vemos o que aconteceu com o sistema financeiro em Portugal. Com o BPN, com o BES." E questiona: "Onde estão as grandes famílias respeitáveis e éticas? Onde estão os governos que diziam que se podia investir em determinados bancos? Onde estão esses políticos que legitimaram determinados agentes económicos?”, questiona, antes de salientar que hoje em dia, em Portugal, as pessoas têm medo, como tinham durante o Estado Novo. “Medo de falar” e de reclamar direitos “muitas vezes devido à situação precária em que se encontram”. "É inadmissível no Portugal contemporâneo."

O título dado à exposição O Tempo e o Modo é o mesmo de uma revista de reflexão, criada em 1963 e editada até 1977 – um espaço de reflexão que não existe mais, lamenta Paulo Mendes, mas que volta a ser aqui tentado, neste projecto-exposição.