Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Carlos Jorge Sousa foi terça-feira anunciado como coordenador do novo Observatório das Comunidades Ciganas.
Nasceu numa família mista de Lisboa. Cresceu a ouvir a avó paterna contar “histórias fascinantes”, “histórias de poder, de riqueza, de prestígio”, desgarradas de tudo que ele via ser a vida das famílias ciganas – era uma mulher misteriosa, toda coberta de negro, incapaz de ouvir música desde que o marido morrera. Adolescente, deu por si a pensar que, se calhar, tudo aquilo eram “histórias da carochinha”. Já adulto, tratou de lhes seguir o rasto, de as investigar.
Professor do ensino secundário, Carlos Jorge Sousa fez mestrado em Relações Interculturais e doutoramento em Sociologia na Universidade Aberta. É investigador do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, onde coordenou a primeira fase do Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, parceria com o CIES-IUL o ISCTE, apresentado na passada terça-feira, na cerimónia que serviu para anunciar a sua escolha como coordenador no Observatório das Comunidades Portuguesas, uma novidade trazia pela Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas.
O PÚBLICO encontrou o investigador, de 59 anos, no seu apartamento, no Porto. “Perguntam-se se estava disponível e eu disse que sim”, começou por dizer o coordenador da equipa composta por três outros elementos, todos do Alto Comissariado para as Migrações. “Fui professor quase 40 anos. Estou aposentado. Tenho muito tempo. E é uma linha de intervenção que em interessa.”
O que será o Observatório das Comunidades Ciganas?
Será um motor de criação de redes de cooperação, que terá entre os seus objectivos a desconstrução de mitos e de representações que existam relativamente às comunidades ciganas. Vamos ter um site. Imagine que um jovem está a fazer um estudo. Queremos abrir a possibilidade desse jovem dar conhecimento disso e, se for o caso, fazer intercâmbio com outros investigadores. Queremos criar condições para recolher, mediar e divulgar trabalhos sobre as comunidades ciganas.
Editarão estudos?
Sim. Vamos ter duas colecções. Uma para divulgação de estudos, teses, e outra mais aberta, com publicações que podem ser resultado de uma conferência, de um colóquio, de um seminário. Não queremos orientar o olhar dos investigadores sobre as comunidades ciganas. Isso seria um erro. Queremos criar espaços de diálogo, de confronto de ideias, de produção de resultados. Queremos que as pessoas se encontrem, partam pedra, façam propostas sustentadas, sem preconceitos, que haja aqui uma preocupação de influenciar as políticas públicas. Era isto que eu gostava de fazer. Será que vou conseguir? Não sei. O que não quero é criar fronteiras à discussão.
Podemos encontrar em si um interlocutor para os grandes temas? Podemos saber, por exemplo, o que pensa de turmas só para crianças ciganas?
Eu sou do tempo das escolas com rapazes para um lado e raparigas para outro. Defendi há muito tempo um sistema de ensino misto. Isto é o princípio geral. Mas temos de ter capacidade de olhar para as coisas e de encontrar as respostas mais adequadas. A minha preocupação é a escolarização das meninas e dos meninos ciganos. Imagine que temos um projecto que garante que as meninas farão a escolarização obrigatória numa turma que não seja mista. Pode ter a certeza de que o apoiarei.
Está a falar de turmas de raparigas, não só ciganas?
Exactamente. Isso é o ideal. A interculturalidade é fundamental. Esse é um debate que é necessário fazer. Não podemos ter certezas absolutas. Não podemos dizer: querem estar, estão têm de cumprir a escolaridade obrigatória com meninos e meninas, como os outros. Sabemos que muitos não cumprem.
A honra das famílias ciganas portuguesas ainda assenta muito na virgindade das suas meninas….
Em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, isso tem estado a emergir. Há escolas com turmas só de rapazes e turmas só de raparigas e opção pela virgindade. Não vou criticar isso. O que eu gostaria era que qualquer mulher tivesse direito à educação, pudesse escolher o seu percurso profissional e o seu casamento. Muita gente diz que as crianças ciganas são obrigadas a casar-se. Isso não é verdade.
Há alguns casos...
Há, mas poucos. A rapariga não se casa se não estiver de acordo. Ela pode dizer que não. É o que se chama “dar cabaças”.
Continua a haver pais que prometem as filhas…
Sim, mas isso é diminuto. Repare, esse tipo de casamentos foi sempre uma realidade nas classes altas em todos os grupos étnico-culturais. Convém manter o estatuto, aumentar o património. Não podemos ignorar que isto acontece nas famílias ciganas? Não. O importante, para mim, é que homens e mulheres escolham quem querem. Isto é um debate que é importante ter. Há tendência de dizer que as meninas são obrigadas a casar-se. Não são. Tem a ver com a educação. E a educação pode ser inibidora ou libertadora. Mas as famílias escolhem a educação que querem dar aos seus filhos e não as podemos criticar isto.
Mesmo que isso implique casamento precoce e abandono escolar?
Cerca de 20% das crianças portuguesas não cumprem a escolaridade obrigatória. No caso das crianças ciganas essa percentagem aumenta exponencialmente. O que podemos fazer? O observatório pode ter um papel importante. Pode colocar as pessoas a discutir de forma livre, não preconceituosa, para encontrarem caminhos que permitam propor respostas públicas. Não penso que vamos encontrar a solução, mas acho que nos podemos aproximar de soluções. Não há uma resposta única. Temos de construir respostas para os contextos em que estas crianças vivem. Isto é uma palavra importantíssima que enquanto coordenador do Observatório posso ter: apoiar estudos que apontem para caminhos diversos.
O primeiro grande estudo nacional sobre as comunidades ciganas indica que há mudanças a acontecer em termos de igualdade de género: menos de metade acha que “mulheres de vergonha” não devem frequentar determinados sítios sem os maridos, um terço entende que uma viúva deve rapar o cabelo e cobrir-se de preto e um quinto que as mulheres não devem discutir assuntos familiares com os maridos…
Era inimaginável há 40 anos, a minha avó paterna, que era cigana, entrar num café sem ser acompanhada. Hoje cada vez é mais normal haver mulheres a entrar em cafés. Acho que o que temos de perguntar é: “Nós, portugueses, de forma geral, evoluímos ou não evoluímos?” Agora, não podemos ignorar que o isolamento, a pobreza, a falta de escolarização são inibidores. As famílias ciganas continuam a estar numa situação muito má. Há evolução, mas ténue. Há distanciamento de algumas famílias ciganas relativamente a não ciganas? Há. Temos muito trabalho a fazer aí. Mas temos de saber que os ciganos têm de ter acesso a educação, a emprego, a saúde, a segurança social como todos os outros portugueses. Há uma parte que lhes compete a eles e eles nem sempre cumprem, nem sempre se esforçam, mas também há uma parte que cabe ao Estado, a todos nós.
Está a pensar em algo concreto?
Já temos mediadores ciganos, mas ainda não existe um quadro de mediadores ciganos. Já imaginou como pode ser importante haver mediadores ciganos nos hospitais? As pessoas que muitas vezes têm familiares internados criam situações que, às vezes, não são boas para elas nem para as outras.
Está a falar de famílias a “acampar” nos hospitais? Nem sempre se compreende que é uma questão cultural, que é uma questão de solidariedade…
É. O sofrimento é colectivo. Não nos cabe mudar ou criticar isto. O que nos cabe é criar condições para evitar situações de conflito. Os mediadores podem ter um papel importante. O mediador pode fazer aquela família compreender quais as regras e normativos de funcionamento do hospital e intermediar entre a família e hospital situações que às vezes são de conflito muito graves.
Algum hospital tem mediador?
Sim, mas ao fim de uns meses deixa de haver verbas e não há mediadores. Gostaria que se criasse um quadro de mediadores. Temos um grupo de homens e mulheres com formação para serem mediadores. Podiam fazer parte de um quadro distrital ou nacional, a que hospitais ou escolas pudessem recorrer.
Como explicar a existência de uma “lei cigana”?
Já ouviu falar em direito consuetudinário? Não está escrito em lado algum. As sociedades sempre se regeram por hábitos e tradições. A constituição e as leis escritas em papel são uma coisa da modernidade. A lei cigana não está escrita em lago algum. É interpretada de acordo com as conveniências. A questão que se coloca é se nessas leis existe violação dos direitos humanos. Não, na lei cigana não existem dispositivos que violem os direitos humanos. O que pode acontecer é que não sejam compreensíveis para outros grupos. Seria compreensível que o seu avó lhe disse que foi a casa dos seus bisavó pedir a mão da sua avó? Esses referentes culturais portugueses ainda estão enraizados nas famílias ciganas. O rapaz vai com o pai pedir a rapariga em casamento.
E há as famílias que prometem filhos em casamento.
Sim. Mas de forma cada vez mais diminuta.
Qual o principal obstáculo à integração?
Seria óptimo que eu tivesse uma resposta clara para isso. Podemos construir diversas respostas. Há problemas que vêm do passado e que permanecem também relativamente a outros grupos em Portugal. As periferias de Lisboa e Porto estão cheias de exclusão. Vivemos numa sociedade que exclui.
As comunidades ciganas são os excluídos dos excluídos?
São. Um dos debates que temos de fazer é esse. Temos de encontrar resposta. Os ciganos continuam a ser os mais excluídos de entre os excluídos. Porquê? Haverá respostas intra e inter pessoais e comunitárias, mas temos de as construir. Temos de construir estradas, percursos, caminhos. As representações que existem em Portugal relativamente às comunidades ciganas são muito negativas.
Na Europa inteira…
Sim. Temos de construir respostas para atenuar estes problemas gravíssimos - na saúde, na educação, no trabalho. São direitos humanos que estão a em causa. E é isto que me preocupa. Se não nos respeitarmos na diversidade humana, não teremos uma sociedade humanamente recomendável.