Por Marta Cerqueira, in iOnline
Há quem passe sem reparar neles, mas há também quem já estranhe as suas ausências. São sem-abrigo há tanto tempo que a sua história já se mistura com as das ruas que usam como casa. A Maria dos Restauradores, o João da Sé, o Francisco do Oriente ou o Pedro das Docas são algumas das personagens de Lisboa com passados complicados e futuros com poucas certezas. Para muitos, a única é mesmo só a de saber que a rua onde dormem será sempre a sua casa. No entretanto, há tempo para pedir esmola e arrumar carros em troca do suficiente para comer naquele dia. Entre os que recusam dinheiro do Estado e comida das associações de voluntariado e os que dependem disso para sobreviver existem pontos comuns de quem partilha vivências. Dormem quase sempre sozinhos, têm uma ou duas pessoas de confiança porque não há espaço para mais. Lisboa tem para cima de 800 sem-abrigo e o i tirou a fotografia e ouviu as histórias dos mais conhecidos de cada zona da cidade. “Qualquer coisa já sabem onde me encontrar”, disse-nos o Pedro, ajudando a traçar um dos mapas mais escuros da capital
1. “Tenho que mexer na porcaria para comer. Mas às vezes até sai lagosta”
Maria José cambaleia pela rua 1.o de Dezembro até chegar ao número 9, uma sapataria cuja entrada lhe serve de cama há dez anos. Natural do Algarve, veio trabalhar para Lisboa onde casou e tinha uma vida estável. “Tudo como as outras pessoas normais”. Quando o marido morreu, Maria José começou a “desleixar--se”, expressão que serve para caracterizar os anos em que começou a beber e a dar-se com más companhias. “Deixei a vida andar e acabei aqui”.
Apesar de viver sem salário nem subsídios, Maria José recusa-se a comer o que as carrinhas oferecem todas as noites. Para compensar o capricho, procura no lixo aquilo que os outros não querem. “Tenho que mexer na porcaria mas olhe que às vezes saem coisas boas, até já comi lagosta e sapateira”, conta, apontando para as marisqueiras que preenchem o início da Rua Augusta. Para ajudar nos dias em que o lixo não dá nada, Maria recorre à esmola, que muitas vezes lhe chega à mão mesmo sem pedir. “Pegue estes 2 euros para uma sopinha”, interrompe uma senhora que lá passa todos os dias.
2. Para Ali, a música serve de bilhete de identidade
Não tem poiso nem na hora de dormir. É habitual ver Ali Regep a deambular pelas principais ruas de Lisboa, do Chiado à Mouraria, do Campo das Cebolas ao Cais do Sodré. Da língua portuguesa conhece poucas palavras e na hora de se apresentar, saca dum monte de papéis que traz no bolso e que servem de cartão de visita. Entre eles está a sua fotografia com os restantes membros da Orquestra Todos, com a qual já chegou a actuar até no Rock in Rio.
A meio da conversa solta o cântico que o caracteriza. Não se percebe sequer que língua é, mas o tom é de lamúria numa potência de voz quase inconfundível. “Lá está ele outra vez”, dizem os colegas que já se habituaram a que Ali troque as palavras por música. O romeno de origem turca é imigrante ilegal e vive na rua com a mulher, de origem búlgara. Com 40 anos, há sete que vive em Lisboa e se pudesse escolher era cá que ficava. “Muito melhor aqui”, nas poucas frases que consegue articular em português. Emociona-se a falar do filho de 24 anos que ficou na Bulgária e que não vê desde que saiu do país. Mais uma vez é no bolso do casaco que traz as memórias e apresenta o filho num cartão quase ilegível, com foto e dados pessoais, que confirmam a idade mas que provam o discurso incoerente que intercala com as cantorias. “Meu filho. Primeiro-ministro. Bulgária”, dizia em loop.
Na fila da comida que as associações vêm entregar mantém-se à parte, de guitarra partida na mão, encostado a um semáforo. “Sopa não. Não gosto”. E assim fica à espera do segundo prato. “Para onde vai a seguir?”, perguntamos. Mais uma vez sem palavras, Ali responde com um gesto de quem diz “algures por aí”.
3. “Não tenho amigos. As companhias da rua são más”
João escolhe o canto mais à direita da escadaria da Sé de Lisboa para passar a noite. É assim há seis anos, sem falhas. Antes de escolher este poiso, foram mais cinco anos pelas ruas da cidade até escolher o sítio onde, sem companhia, descansa o corpo entre turnos a arrumar carros junto à Casa dos Bicos. “Não gosto de ter companhia, as companhias da rua são más, é só alcoólicos e drogados”, explica, apagando o cigarro – o seu único vício – num frasco vazio que tem junto às caixas que lhe servem de cama. “Vê? Não incomodo ninguém, nem a rua sujo”.
João conta-nos que a família existe, “mas é como se não existisse”. Do dinheiro que enviava todos os meses para a mulher e para a filha durante os anos em que trabalhou fora do país, ficou sem nada. “Roubaram-me tudo. Decidi pegar nas minhas coisas e vir embora”. O “ir embora” acabou por fazê-lo perder rumo e João teve de se resignar a viver na rua e a sobreviver do que lhe dão. Aos seus pés tem um cartaz com a expressão “Help me” e espaço para as moedas que os turistas e conhecidos vão deixando. O seu emprego – “pelo menos é assim que o encaro” – é arrumar carros, num largo com poucos lugares, mas com clientes fixos.
João faz uma pausa no descanso para receber a comida que vem das associações. Trata todos os voluntários pelos nomes e já sabe identificar quais as carrinhas que trazem comida a seu gosto. “Já me deram pão duro, bolos com bolor, mas é com isso que tenho de me remediar”.
Quando se fala de futuro, João volta ao passado. “Há uns anos tive uns quistos no cérebro que nem sei se estão curados”. Sobre a possibilidade de mudar de vida, João não deixa abertas. “Já é tarde para mim”.
4. “Já tive um cliente a levar-me a jantar fora. Foi um regalo”
“Quantos anos acha que eu tenho?”. Arriscamos 63. “Na mouche”. Está dado o mote para uma conversa curta mas que, pela vontade de Pedro, durava a noite toda.
Arruma carros no largo à entrada das Docas há muitos anos, tantos que já não consegue dar um número. “Já toda a gente me conhece”, garante. Com base na confiança de quem ajuda a estacionar os mesmos clientes todos os dias, tem sempre quem lhe ofereça dinheiro, tabaco e até já o levaram a jantar. “Foi um professor de espanhol que no Natal me convidou para ir a uma marisqueira aqui em Alcântara”. A primeira coisa a vir para a mesa foi uma sapateira. “Foi um regalo”. Aproveitando a boa vontade típica da época natalícia, juntou uns trocos extra aos sete a oito euros que costuma fazer por dia. “Ao fim-de-semana a coisa melhora e entre sexta e domingo consigo tirar uns 70 euros”. Todos os trocos do dia se juntam aos 180 euros que recebe de subsídio por ter ficado incapacitado num acidente de trabalho. Tudo junto paga a pensão onde vive sozinho, por não ter dinheiro para uma casa. “O meu sonho é encontrar uma velha rica para ficar comigo”, brinca enquanto esfrega os dedos das mãos em sinal de dinheiro.
Apesar de atracado nas Docas, Pedro já conheceu meio mundo. “Fiz de tudo um pouco. Fazia o que era preciso e ia para onde havia trabalho”. A trabalhar nas obras, a apanhar fruta ou como servente de pedreiro, viveu em pelo menos quatro cidades espanholas, no Canadá e nos Estados Unidos. Contrapartida? “Quando cheguei tinha um par de cornos da minha mulher que nem queira imaginar”. Mesmo depois do divórcio, continuou sempre em contacto com as três filhas e os cinco netos que não sabem o que ele faz no dia-a-dia. “Vou vivendo, é o que lhes digo”.
Com o saco de plástico cheio de comida dado pelas associações, Pedro diz adeus. “Qualquer coisa já sabem onde me encontrar”.
5. A “casa portuguesa” de Stanislaw é uma caravana em Santa Apolónia
O cabelo comprido num metro e noventa de homem chamam a atenção. “O polaco”, como é conhecido, olha desconfiado por debaixo das abas de chapéu de Indiana Jones que ajudam a criar um look conhecido nas ruas de Lisboa. Apresenta-se por escrito. Escreve Stanislaw Szalpuk nas costas de um postal que traz no bolso e, à falta de palavras portuguesas no vocabulário, é com letras e desenhos que tenta passar a mensagem.
10.12.2010 são os primeiros números a surgir no papel e que marcam a data em que decidiu sair da Polónia. “Dia da assinatura da declaração universal dos Direitos Humanos”. Uma pesquisa rápida na Wikipédia prova que tem razão. Foram vinte dias a atravessar a Alemanha, a França e a Espanha até chegar a Lisboa numa caravana que ainda hoje lhe serve de abrigo. “Quando cheguei, estacionei debaixo da ponte mas a polícia marítima blá blá blá, tive de sair”. Há quatro anos que tem estacionamento permanente ao pé da estação de Santa Apolónia, “zona má, de drogas e álcool”, mas onde já conhece toda a gente e onde todas as noites espera pela refeição quente trazida pelas associações de voluntariado.
Aos 40 anos, Stanislaw fala do que o trouxe a Portugal com um entusiasmo quase infantil. “Mariza” é a palavra mais vezes repetida ao longo do discurso, que deixa dúvidas sobre uma eventual relação profissional com a fadista, mas a certeza de uma admiração sem limites. Sabe a data dos concertos, o nome das salas de espectáculo. “Quer mais? Veja o meu Facebook”. Assim fizemos. Post sim, post não, aí está a referência à fadista, com vídeos, partilhas e comentários em cascata. “Eu não maluco, eu não psicopata, eu fã”, esclarece.
Antes de ir embora faz questão de provar o porquê de na Polónia ser considerado “um artista”, palavras suas. Saca da flauta do bolso esquerdo e improvisa durante uns minutos. A seguir vai para a carrinha, “a minha casa”, descansar. No passo descontraído que o caracteriza, vai trauteando “é uma casa portuguesa com certeza, é com certeza uma casa portuguesa”.
6. “Pelo menos no Estado Novo não haviasem-abrigos”
Recusa ser fotografado. “Toda a gente me conhece”, justifica. Parece ser mesmo assim, tendo em conta os beijinhos e os acenos que dá a quem conhece. Dormiu na rua 18 anos, os últimos no Largo do Caldas “e sempre fui simpático para quem foi simpático comigo”. Conseguiu agora “um espacinho” numa casa. “Mas não paga renda”, adianta Natália, uma das poucas amigas que ficou da vida na rua e que espera com ele pelas refeições entregues nas carrinhas dos voluntários.
Não fosse a barba de alguns dias a denunciar alguma falta de cuidado, ninguém diria que Nelson ocupa sozinho um “espacinho” numa casa. Camisa, pullover e casaco de fazenda. “Foi tudo dado, mas tento andar arranjado”.
Se o aspecto não o denuncia, muito menos o discurso. Fala de política e economia com recurso a números certos e datas sem erro. “Tenho ideias monárquicas sabe? Esta democracia não funciona”. A desilusão com o que sobrou de uma vida como electricista e dos anos no Ultramar, levam-no a criticar tudo o que seja novidade. “Não gosto de tecnologias, nem da igreja ter sido posta de parte na vida das pessoas e muito menos destes políticos”, iniciando um rol de queixas que terminam com: “Isto devia ser uma monarquia como na Holanda e na Bélgica”. À falta de reis, apela ao regresso de um Salazar. “Pelo menos no Estado Novo não havia sem-abrigos”.
Aos 63 anos, acha que já não vai a tempo de mudar de vida. Só pede uma amiga “que lhe aqueça os pés à noite” e que não o deixe morrer sem saber o que é ter uma mulher.
7. “Sou filho desta gente toda. Esta rua é como se fosse a minha família”
Já são tantos os anos na rua que Rui já não os consegue contar. Sabe dizer, no entanto, que já são pelo menos sete a dormir da Rua Palmira, nas traseiras da Igreja dos Anjos. Quando nos conhecemos, há um mês, a sua “casa” era a porta abrigada dos CTT, um edifício que entretanto ficou vazio. “Os correios fecharam, mas a minha casa não. Continua a ser a mesma”, garante.
A arrumar carros ganha uma média de dez euros por dia, o que “às vezes dá para almoçar, outras para jantar e, nos dias de sorte, dá para o almoço e o jantar”. Recusa-se a receber apoio do Estado e comida das associações. “Tenho uma boca esquisita”, justifica.
A filha de 18 anos, que está a cargo dos padrinhos desde que a mãe morreu, não sabe que o pai dorme na rua. “Nem ela sonha e ai de quem lhe diga”, ameaça. Às perguntas mais difíceis da filha, a resposta é sempre a mesma: “O pai cá se arranja”.
8. “Se pudesse estava no Hotel Tivoli, a apanhar sol na barriga”
São poucos os dentes, mas o sorriso que nos dá é dos mais simpáticos da noite. Francisco Leiroa viveu mais de 40 horas como um nómada. “Já apalpei um bocadinho desta terra toda”. Dos anos em França, Itália, Alemanha, Suíça Espanha e Palma de Maiorca trouxe a experiência como serralheiro, mas também uma clavícula partida que ditou o fim da sua capacidade de continuar a exercer a profissão.
Em casa tinha uma mulher doente e uma filha insatisfeita com a vida que levavam em Vila Viçosa, de onde é natural. Ao falar delas, o ar simpático do início muda para uma expressão carregada que traduz a desilusão que sentiu quando as duas vieram para Lisboa, cortando o contacto com Francisco. “Abandonaram-me, sabe? E isso fez crescer uma raiva dentro de mim”.
De Vila Viçosa para a Gare do Oriente, onde dorme todas as noites, há um lapso de discurso que Francisco recusa explorar. “É aqui que vivo é aqui que vou morrer”.
Para afogar as mágoas e aquecer o corpo, Francisco bebe “um copinho todas as noites”. O cheiro a álcool e os pacotes de vinho vazios denunciam que será um pouco mais. “Gosto de beber, o que quer que lhe faça?”. O dinheiro que lhe sobra da curta reforma que lhe foi atribuída depois de ficar incapacitado, dá para umas garrafas que divide com os companheiros de rua. “Às vezes também dá para comida”, garante Francisco, traduzindo as prioridades do seu grupo de amigos.
Francisco tem uma casa na Pontinha e saca do maço de chaves que traz no bolso para o provar. “Mas aquilo tinha os esgotos entupidos e a canalização toda estragada. Estou melhor aqui”. Do pouco contacto que tem com a filha, omite que dorme há sete anos em frente à estação do Oriente. “Era um desgosto muito grande e eu não gosto de dar desgostos a ninguém”.
O frio deste inverno que o faz acordar todos os dias com as mãos “geladinhas , geladinhas”, leva a sua imaginação a voar longe. “Se pudesse escolher estava no Hotel Tivoli, deitado com a janela aberta para apanhar sol na barriga”.
9. “Somos honestos e fazemos as pessoas sorrir, duas coisas que o mundo precisa”
No meio de Jose e Lyndon está o cão e a cerveja, dois dos companheiros de viagem destes que se intitulam de “pedintes preguiçosos”. Há 12 anos que percorrem o mundo, escolhendo as ruas principais das cidades a pedir dinheiro. Nada de novo à partida, não fosse a sinceridade com que o fazem. Em vez do ar cabisbaixo comum de quem depende da esmola de quem passa, Jose e Lyndon, estão sempre com o ar mais relaxado do mundo. Em cartazes que colocam à sua frente estão os pedidos diferenciados: “para cerveja”, “para vinho”, para charros” e “para ressaca”. Quem passa pode escolher para que causa fazer a doação o que, no seu conjunto, parece contribuir para o sorriso constante com que encaram os olhares de estranheza de quem passa por eles pela primeira vez.
Ocupam o Chiado durante o dia e dormem na Gago Coutinho à noite. Da polícia não têm queixa. “No geral, olham para nós, sorriem e deixam-nos em paz”.
Fazem isto por gosto, garantem. “Somos honestos e fazemos as pessoas sorrir, duas coisas que o mundo precisa: honestidade e felicidade”. Sobre a escolha do próximo destino, põem o dedo em riste, rodam e pousam num mapa imaginário que traduzem em palavras: Sevilha ou Granada.