Alexandra Campos, in Púbico on-line
Juros de dinheiro angariado para tratamentos no estrangeiro entraram no cálculo do rendimento familiar, que ultrapassou o máximo previsto na lei para ter direito a isenção, 628,28 euros por mês.
Um jovem que sofre de cancro há uma década perdeu recentemente a isenção total de pagamento de taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde (SNS) porque os juros do dinheiro angariado em campanhas de solidariedade para tratamentos no estrangeiro entraram no cálculo de rendimentos do seu agregado familiar. Para voltar a ter direito a isenção em todos os serviços de saúde públicos, exigem-lhe agora que se apresente a uma junta médica e pague 50 euros, queixa-se a mãe, Glória Calisto, que denunciou a história por se sentir “revoltada” com a situação.
“Não é justo”, defende Glória, que tem tentado por vários meios obter ajudas financeiras para aliviar o sofrimento do filho, João Pedro Calisto, doente com leucemia linfoblástica aguda desde os sete anos. Hoje com 17 anos, João já experimentou sucessivos tratamentos, nomeadamente um transplante de medula óssea, sem sucesso, e tem feito quimioterapia no SNS, mas a mãe quis tentar outro tipo de terapias que não são pagas pelo serviço público e, para isso, organizou várias iniciativas para recolha de fundos.
Foi há cerca de dois meses que Glória percebeu que ela e João Pedro, até então isentos do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica, tinham perdido o direito a este benefício, quando o levou a uma consulta no Centro de Saúde da Chamusca. “Disseram-me que já não estava isento e que tinha que pagar cinco euros”, relata Glória, que há alguns meses voltou a trabalhar, para ganhar um salário "um pouco superior ao mínimo nacional". Recebe ainda uma pensão de alimentos do ex-marido de 150 euros por mês, mas, segundo afirma, terão sido os juros de 41 euros provenientes da conta bancária que abriu com dinheiro angariado em várias iniciativas de solidariedade que fizeram ultrapassar a fasquia dos 628, 28 por mês (o máximo previsto na lei para beneficiar da isenção por insuficiência económica) .
O dinheiro angariado, segundo explicou ao jornal Mirante, que revelou a história, tem sido usado nos últimos tempos para pagar tratamentos de medicina chinesa, medicamentos que não são fornecidos pelo Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, onde João é seguido, e para fazer exames numa clínica na Alemanha, tudo na tentativa de melhorar a qualidade de vida do filho.
Como as campanhas renderam "cerca de 12 500 euros" e na Alemanha lhe pediram “70 mil euros” para fazer o tratamento necessário, Glória explica que abriu uma conta para depositar o dinheiro no banco, que rendeu os tais juros que somaram ao seu rendimento familiar e provocaram a perda do direito à isenção.
Glória ainda tentou recorrer mas, na repartição de Finanças, entregaram-lhe uma declaração da Plataforma de Dados de Saúde explicando que deixava de estar na condição de insuficiência económica porque o seu rendimento era superior ao máximo previsto na lei. Para voltar a beneficiar deste direito em todo o tipo de consultas (como doente oncológico, João está isento em todo o tipo de cuidados de saúde que tenham que ver com a patologia), o jovem tem de ser submetido a uma junta médica, que lhe vai custar 50 euros.
Isso mesmo é confirmado pela Administração Central do Sistema de Saúde que, em resposta escrita ao PÚBLICO, esclarece que os doentes oncológicos estão dispensados de pagamento de taxas nas consultas, sessões de hospital de dia, bem como actos complementares (como exames) prescritos no tratamento da patologia, mas, para ussufruirem deste benefício nos restantes actos médicos, terão "mesmo que se dirigir a uma junta médica para pedir a isenção”.
“É um caso insólito”, critica o deputado do PCP António Filipe, que já fez uma pergunta ao Governo para tentar esclarecer a situação. Para António Filipe, a situação não pode deixar de ser considerada injusta. “Não faz qualquer sentido que quem tem de recorrer a acções de solidariedade para custear um tratamento a que de outra forma não teria acesso seja depois penalizado no acesso aos cuidados públicos de saúde”, argumenta.