14.2.17

Violência sem classe

Paula Ferreira, in Jornal de Notícias

Uma vida marcada na primeira chantagem, na primeira agressão. E que se repete, sempre. Até ao dia em que ela ou ele furam o bloqueio do silêncio imposto pelo medo, pela vergonha. Têm a coragem de se assumir como vítimas. Hoje celebra-se o Dia dos Namorados, tempos de corações vermelhos trespassados por setas de Cupido, dia de troca de rosas. Ou mensagens lamechas. E, enfim, do comércio faturar mais do que o normal.

O Dia de S. Valentim - o santo que desafiou Cláudio, o imperador adverso ao casamento dos jovens antes de entrar no seu exército - transformou-se, também, num dia de denúncia. Nunca é de mais lembrar: chantagem e posse são palavras interditas numa relação a dois. Mas a realidade amorosa, em certos casos, é dura, e os sinais surgem muito mais cedo do que seria expectável. Como o JN revela na edição de hoje, há crianças de 13 anos vítimas de violência no namoro. Os resultados de um inquérito desenvolvido pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) deixam a nu uma realidade preocupante. Por exemplo, 24 por cento dos jovens ouvidos consideram normal partilhar, nas redes sociais, fotos íntimas ou insultar. Normal, a posse; normal, o insulto. E uma percentagem menor - mas ainda muito mais jovens do que seria razoável - legitima a violência psicológica.

Um longo caminho foi, no entanto, feito. A perceção de que a violência existe é a grande conquista, embora jovens e também adultos considerem apenas como ato violento a agressão física. Nada mais perigoso. Estudos recentes, em que a UMAR e a Associação de Apoio à Vítima assumem papel fundamental na denúncia e na pedagogia, revelam algo escondido durante muitos anos. Na violência não existe classe social, e nem diminui à medida que as habilitações académicas aumentam. Não deixa de ser surpreendente alguém, formado e informado, independente e autónomo, permitir que o outro controle os seus passos, as suas amizades, o comprimento da saia ou a parte do corpo que fica a descoberto. Não deixa de ser surpreendente que alguém formado e informado, independente e autónomo, seja maltratado, hospitalizado, uma, duas, três vezes... perca a conta das agressões e continue a sofrer em silêncio. O Dia de S. Valentim é ridículo, soa a falso. Mas continuaremos a celebrá-lo para que as vítimas daqueles que lhes deveriam dar afeto possam acordar e inverter a velha máxima: o silêncio é de ouro. O silêncio é o inimigo, o principal aliado de quem agride e humilha. Assim, além de fomentar o negócio, o santo casamenteiro, nos novos tempos, desperta também as consciências.