A demora dos procedimentos, a passagem por campos de refugiados ou a fuga dos países de origem: tudo isto são factores de risco para potenciar a degradação da saúde mental. “O que aconteceu é inédito nas consequências, mas todas as organizações que participam no acolhimento de refugiados já tiveram situações em que as pessoas tiveram picos de stress”, aponta André Costa Jorge. Sem querer “desculpabilizar ou menosprezar o que aconteceu”, o coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) e diretor-geral do Serviço Jesuíta ao Refugiado (JRS), vinca a necessidade das pessoas serem sinalizadas e terem o acompanhamento psicológico adequado ao longo de todo o processo de integração. “Tivemos alguns casos de tentativa de suicídio, de intenções, de verbalizações das tentativas. As pessoas verbalizam o sofrimento e é normal que aconteça. Não é totalmente surpreendente que as pessoas se manifestem e se queixem.”
Nunca antes uma situação como a desta terça-feira, em que um homem matou duas pessoas e feriu outra no Centro Ismaelita, tinha acontecido em Portugal, um homicídio envolvendo uma pessoa com estatuto de refugiado.“Esta pessoa, provavelmente, não soube controlar um pico de stress e ansiedade e creio que isto descambou num ato de violência que todos lamentamos e devemos condenar, mas que, de facto, está enquadrado em toda a sua história e fundamenta o estatuto de refugiado”, diz Costa Jorge, apontando às instituições a responsabilidade de fazer o acompanhamento de quem chega e ao Estado a de continuar a financiar quem acolhe e integra.
Abdul Bashir, afegão de 28 anos, chegou há um ano e meio chegou a Lisboa com os três filhos menores no âmbito da colaboração do Imamat Ismaili/Rede Aga Khan para o Desenvolvimento. Atualmente estava a ser acompanhado pela fundação Focus, organização afiliada do Centro Ismaelita e que participa no acolhimento de refugiados.
“É importante enquadrarmos bem o sofrimento psicológico de alguém que age violentamente. Tem de haver uma compreensão psicológica e sociológica sem justificar ou legitimar a violência”, diz André Costa Jorge
“Não conhecemos a história exata desta pessoa, não podemos pôr hipóteses sobre o caso. Aliás, um bom profissional não o faz. Não podemos rotular alguém com base naquilo que ouvimos nos meios de comunicação”, vinca Rosário Suarez, psicóloga da JRS. “O que aconteceu a este homem pode acontecer com qualquer pessoa portuguesa, não é exclusivo de refugiados, por isso é que também há consultas de emergência psiquiátrica no Serviço Nacional de Saúde”, sublinha. O que difere, explica, é que tendencialmente há um risco potencial maior em pessoas com o contexto de um refugiado. “É importante enquadrarmos bem o sofrimento psicológico de alguém que age violentamente”, continua André Costa Jorge. “Não é justificar os atos, mas tem de haver uma compreensão psicológica e sociológica sem justificar ou legitimar a violência. Compreender a problemática, percebendo a dimensão de vulnerabilidade e encontrar caminhos para que atos de violência não voltem a acontecer”, acrescenta.
No caso da JRS, todos os refugiados que acolhem passam por um processo de triagem e ao longo dos 18 meses de integração têm sempre disponível um psicólogo a quem podem recorrer. Porque os problemas nem sempre se manifestam à chegada a um novo país. “Existem alguns casos que precisam de começar com o acompanhamento psicológico logo à chegada, seja em grupo ou individual, consulta em psiquiatria, algum apoio emocional ou intervenções em crises. Tentamos não atuar apagando fogos, tentamos atuar na prevenção”, explica Rosário Suárez. Só em 2022 a JRS seguiu 404 refugiados e imigrantes, o que corresponde 2277 consultas de saúde mental por todo o país.
Um surto psicótico pode ter na sua origem “variadíssimas sintomatologias”. “Pode até ter origem genética”, diz a psicóloga, recusando apontar qualquer causa para o que poderá ter acontecido no caso de Abdul Bashir. “Tem sempre que ver com as estratégias que cada pessoa tem. A pessoa pode ter algumas vulnerabilidades pela história pessoal e não necessariamente pelo trauma de guerra. Claro que, por exemplo, ter estado num campo de refugiados é um fator de risco, mas quando vemos um utente temos de ter em conta que a história dessa pessoa começa muito antes disso”, diz ainda.
Para Costa Jorge, o seguimento dado a um refugiado deve ser multidisciplinar e amplo, incluindo apoio psicológico. “Isto é importante porque as pessoas refugiadas em processo de acolhimento, à chegada, transportam consigo uma série de problemáticas, capacidades e expectativas.” E continua: “Nos países de trânsito suportam coisas que não conseguimos imaginar porque estão motivados por uma vida melhor, que é alimentada por imagens, organizações no terreno e por mensagens dos países de acolhimento que nem sempre correspondem à verdade. Se, por um lado, isso as protege porque lhes dá um propósito, por outro, quando chegam, confrontam-se com uma realidade nem sempre fácil, nem sempre conseguem uma integração rápida ou o conforto que sonharam.”
À chegada os processos demoram, leva tempo a conseguir casa ou a aprender a língua. “São processos exaustivos de negociação, em Portugal tudo demora tempo e nem sempre é compreendido. Há uma dimensão grande de urgência e ansiedade. É importante que as pessoas baixem as expectativas porque isso facilita o trabalho do acolhimento.”
Já Rosário Suárez acredita que, “sendo esta a sociedade que temos”, é preciso preparar as pessoas. “Insistimos na importância de espaços de apoio porque para que lidem com estes tempos, que todos sabemos que deviam ser menos demorados. É preciso prepará-los para que vivam em sociedade.”
Paralelamente, continua Costa Jorge, é habitual estas pessoas carregarem “padrões de perda, descrenças e experiências mais ou menos dolorosas”. “Olhando para este caso concreto: o homem esteve num campo de refugiados, que por si já é uma experiência frustrante e complicada, a mulher morre-lhe num incêndio e depois é colocado em Portugal com três filhos menores. Há uma pressão enorme sobre este homem, sobretudo numa cultura em que o homem não é tipicamente cuidador e cabe-lhe apenas o papel de ir trabalhar e sustentar a família.”
Depois, no momento da integração, recorda a psicóloga, também há aquilo que qualquer pessoa forçada a deixar o seu país de passa: o luto migratório. “Estamos a pedir a alguém, que já tem a sua história, que se comporte de forma diferente. Não tem mal, mas existe um luto neste processo porque estamos a pedir-lhes que sejam outras pessoas”, explica ainda Rosário Suárez, que cita o psiquiatra espanhol Joseba Achotegui, para enumerar “sete microlutas”: a língua, deixam o seu idioma materno para aprender um novo; a cultura, quando se adaptam a novas hábitos, comportamentos e tradições; assim como a terra, o status social, as redes de apoio e os grupos de pertença e ainda os riscos à integridade física.