7.5.15

Santa Casa investe para dar dignidade às pessoas

por Pedro Sousa Tavares, in Diário de Notícias

Entrevista a Fernando Paes Afonso, vice-provedor da Santa Casa da Misericórdia.

Como é que a Santa Casa reagiu ao aumento das solicitações nestes anos de crise. Em que setores sentiram maior aumento das solicitações?

Esse aumento foi transversal. E isso colocou-nos vários problemas. As respostas tradicionais aos problemas tradicionais não bastavam. Nós encontrámos uma realidade com problemas novos. Pobreza repentina, pobreza muito envergonhada...

Nomeadamente na classe média...

Muito na classe média. Dando um exemplo doloroso, que se relaciona com as notícias de períodos de crise: os velhos que são abandonados nos hospitais. Percebemos que tínhamos de ajudar a encontrar resposta para estas situações. Cresceu muitíssimo o valor que nós gastamos com subsídios às famílias para lares. A nossa capacidade instalada não chega.

Estão a recorrer a lares de outras instituições?

Tivemos de recorrer aos lares privados, aos chamados lares lucrativos. É uma forma de pobreza que cresceu imenso. Depois, surgiram outros problemas complicados. Os problemas dos pais que julgavam que a vida se tinha realizado normalmente, os filhos estavam a trabalhar, e tiveram de assistir ao regresso dos filhos, à desestruturação das famílias dos filhos. E muitas vezes com reflexos nesses pais, por exemplo por fianças que prestaram aos filhos que não cumpriram créditos. Dar respostas é a missão da Santa Casa, mas de facto tivemos um acréscimo muito grande da procura, que sentimos em todo o lado. Por exemplo, temos uma rede de cuidados de saúde complementar à nossa ação principal. Temos cuidados primários que já não fazem só isso: são quase cuidados secundários. No sistema Nacional de Saúde, vou ao centro de saúde, onde tenho os cuidados primários, e se é preciso sou encaminhado para o hospital. Mas nós temos uma procura que nem isso é capaz de fazer. Não tem dinheiro para isso. Nem sequer tem dinheiro...

Para as taxas moderadoras?

Ou para ir. Os nossos cartões de utilizadores desses cuidados aumentaram exponencialmente. Quando as pessoas são pobres mesmo, não têm dinheiro para ir, ou para ir comprar os medicamentos que são prescritos, mesmo na parte que resta além da comparticipação do Estado. É uma realidade que como cidadãos não gostamos de ver, preferimos não ver, mas de facto há fenómenos de pobreza com os quais é muito difícil lidar.

Não lhe queria pedir para fazer política, mas essas situações que descreve não comprovam que houve alguma falta de cuidado na forma como algumas medidas foram tomadas nos últimos anos, sem acautelar as consequências? Por exemplo nessa questão dos empréstimos bancários?

Estou neste lugar na qualidade de gestor, não sou analista político nem é essa a minha função. A única coisa que digo é que não é a primeira vez que estou na Santa Casa da Misericórdia, estive a primeira vez era provedora a doutora Maria José Nogueira Pinto, de 2002 a 2005. Antes de chegar, não fazia ideia do que era ser pobre em Lisboa. Ser pobre em Lisboa ou no Porto, para falar nas grandes cidades, ou até na malha urbana, não tem nada que ver com o que era ser pobre no meio rural. É não ter batatas para ir buscar. Não era a crise que há hoje e encontrei pobreza que nem sabia que existia. Não fazia ideia de que havia pessoas que viviam em buracos, nem que estes existiam. O que senti desta vez, com esta crise, foi a transversalidade. E em relação à crise de 1983-85, nessa altura, parte da população urbana, que era com certeza já dominante, não tinha o domínio que tem hoje. E agora serve-nos pouco recolher que muito errado esteve quem permitiu o congelamento das rendas durante 40 anos, que obrigou a que os novos que queriam ter casa tivessem de a comprar, porque não havia casa para arrendar, e comprou por preços inacreditáveis. Um povo inteiro sem alternativa a não ser endividar-se para comprar casa.

Falou na capacidade de resposta dos vossos equipamentos. Onde é que estão a investir no reforço dessa capacidade? Há alguma aposta que queira destacar? Fala-se em hospitais, por exemplo...

Há muitos projetos que estão a fazer o seu caminho. Recebemos do Estado os chamados acolhimentos da capital, alargámos a nossa resposta, temos mais cerca de 22 estabelecimentos do que tínhamos antes da crise. A Mitra [albergue ] passou para a Santa Casa da Misericórdia, mas se fosse visitar a Mitra antes de passar para Santa Casa acho que se sentiria indignado... esse é um dos grandes projetos: a requalificação da Mitra, para ter efetivamente uma resposta adequada à dignidade humana. Todo o investimento que temos feito é para garantir que as pessoas são tratadas com a dignidade que merecem. É verdade que a Santa Casa anda à procura de espaços onde possa oferecer as respostas de que as pessoas precisam. Nomeadamente na área dos cuidados continuados, temos uma unidade de cuidados continuados pensada no tempo da doutora Maria José Nogueira Pinto que está sobrelotada. E Lisboa precisa dessa resposta. E nós damos, por exemplo, no apoio domiciliário. Vamos a casa das pessoas. As respostas nem sempre...

Implicam criar um espaço físico?

Nem sempre são o lar. Podem ser o apoio domiciliário com diferentes valências de apoio ao idoso. Lisboa, nesse aspeto, é uma cidade escondida. Os nossos mais velhos estão nos últimos andares dos prédios, porque antigamente eram os de renda baixa. Isto parece um contrassenso, mas onde é que encontra os velhos abandonados, sós, absolutamente sós? Nos últimos andares. Por vezes é de uma grande violência a própria pessoa pensar: "O que é adequado para mim é um lar." É um pouco como pensar: "Então, vou esperar." Muitas vezes, a resposta adequada é o apoio domiciliário. E as pessoas que o dão - digo isto com o à-vontade de quem não trabalha na área mas tem grande respeito por quem o faz - sentem-se privilegiadas. Estão a fazer a diferença.

Em fevereiro deste ano foi anunciada uma auditoria à SCML pela inspeção do Ministério da Segurança Social. Há algum desfecho conhecido?

Não. Ela está a decorrer, a um ritmo normal. Eu sou um grande adepto de auditorias e pratico-as porque nos ajudam a corrigir as coisas que não estão bem: e acho perfeitamente normal e saudável que instituições como a Santa Casa ou outras sejam auditadas. No outro dia foi conhecido o resultado da auditoria do Tribunal e Contas ao Tribunal Constitucional. Na vida das organizações dos países como aquele que queremos ser: um país pleno, de cidadania plena, as instituições podem e devem ser escrutinadas. Quanto aos resultados, os auditores o dirão.