Francisco Ferreira, in "Expresso"
“I, Daniel Blake” tem a câmara à altura de um doente cardíaco de meia idade que, sem poder trabalhar, se revolta contra a burocracia e o absurdo do sistema de segurança social britânico. Foi o melhor dos filmes que o palmarés de Cannes não ignorou
Ken Loach entrou este domingo para o restrito grupo de cineastas que já conquistaram duas palmas de ouro depois de “I, Daniel Blake” sair vencedor da 69ª edição do Festival de Cannes. O filme preferido do júri, presidido pelo australiano George Miller (“Mad Max”), é um Ken Loach 'à moda antiga', isto é, uma obra politicamente encarniçada e comprometida com o presente (e longe dos retratos sociais de época a que ele se tem dedicado), a melhor do seu autor em muitos anos – e isto é tanto mais surpreendente que o britânico, ele que cumpre dentro de poucas semanas 80 anos, já havia anunciado que se iria reformar. Em boa hora mudou de intenções, arrecadando em Cannes uma nova Palma de Ouro. O discurso deixado à plateia foi reivindicativo, afiado (como é seu hábito), criticando a crise e “este neo-liberalismo que está a conduzir-nos a uma neo-catástrofe.”
DIREITO À INDIGNAÇÃO
Quando o filme começa, já a voz off de Daniel Blake (e ainda nem lhe vimos a cara) protesta contra o absurdo inquérito que uma 'técnica' do Estado Social o obriga a completar. Homem simples, viúvo, sem filhos, marceneiro de profissão que aprendeu a fazer um pouco de tudo com as mãos, mas que não sabe para que serve um rato de computador, Daniel (papel seguro de Dave Johns, cara conhecida da TV britânica) está ali porque sofreu um ataque cardíaco. Não pode trabalhar, mas aos 59 anos é ainda demasiado novo para receber pensão antecipada - e ele precisa absolutamente dela para se manter.
Aguarda-o uma via sacra de papelada e horas de espera a ouvir atendedores automáticos no outro lado da linha, deslocações infinitas à Segurança Social. Mas Loach também nos mostra que o seu Daniel tem coração, na relação com os vizinhos, ou quando este decide ajudar uma mãe solteira, com dois filhos, numa situação económica muito pior que a dele, porque aquela mulher está à beira de ruir, de cair na miséria, com a ameaça da prostituição a bater-lhe à porta. Por isso, decide ele que o seu sofrimento privado tem que encontrar uma ressonância pública, um significado, gesto de charme ou ação de propaganda que lancem o grito de alerta – e o título virá disso mesmo. Estamos nos arrabaldes de Newcastle, nos dias de hoje. No retrato de uma classe operária “a passar fome na quinta maior economia do mundo” (o Reino Unido), recordou Loach enquanto Cannes o aplaudia.
UM PALMARÉS COMOVIDO
O resto dos prémios, e descendo na hierarquia dos mesmos, levou ao palco um Xavier Dolan que mostrou as suas emoções, mas forçando o tom, em falsete – e esse é o tom de “Juste la fin du monde”, que adapta uma peça de Jean-Luc Lagarce, com a nata do cinema francês atual: Natalie Baye, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Vincent Cassel. Venceu o Grande Prémio do Júri. Este galardão costumava ter o hábito de premiar uma obra de alto relevo cinematográfico.
O prémio de Melhor Realização distinguiu ex-aequo Cristian Mungiu (“Graduation”) e Olivier Assayas (“Personal Shopper”). Já “The Salesman”, penúltimo filme exibido a concurso, do iraniano Asghar Farhadi, acumulou o prémio de Melhor Argumento (do próprio Farhadi) e de Melhor Ator (Shahab Hosseini). Esta é a história de um casal de atores de teatro, ele também encenador, forçado a instalar-se num novo apartamento de Teerão quando o prédio em que vivem fica à beira de colapsar. Com um incidente lamentável, relacionado com a ex-inquilina do apartamento em que aqueles se instalam, chegam os primeiros sinais de intolerância e a vontade de uma vingança estúpida.
A britânica Andrea Arnold, que conhecemos de “Red Road” e de “Fish Tank”, foi aos EUA filmar um bando de teenagers do sub-proletariado que sobrevivem, de terra em terra e de motel em motel, a vender porta a porta revistas de um suposto programa de apoio escolar. Havia quem esperasse que Andrea Arnold fosse mais longe no palmarés porque, apesar da vulgaridade do ponto de vista e da duração excessiva, este é um filme de atores e de nervo, sem que os amadores (Sasha Lane) se distingam dos profissionais (Shia LaBeouf) e dos talentos emergentes (Riley Keough, a neta de Elvis Presley que já entrará no último “Mad Max). Mas o desacerto do palmarés foi geral, e ficou mesmo feio com a ausência de Isabelle Huppert por “Elle”, de Paul Verhoeven, que é uma obra-prima. Que o júri durma de boa consciência pois preferiu dar o prémio de Melhor Atriz a Jaclyn Jose, num filme do filipino Brillante Mendoza que nem é dos seus melhores, “Ma' Rosa”. Fora dos prémios, ficaram “Aquarius”, do brasileiro Kléber Mendonça Filho, “Ma Loute”, de Bruno Dumont e o alemão “Toni Erdmann”, terceira obra de Maren Ade (que antes já vencera o prémio Fipresci).
Logo no início da cerimónia, uma nota para a rara elegância de Jean-Pierre Léaud e para o modo emocionante como ele falou de cinema, recebendo um prémio 'à carreira', coisa que ele afirmou nunca ter querido. Cannes atribuiu-lhe uma Palme D'Honneur que só é outorgada em ocasiões especiais e Léaud, recordando como chegou a Cannes, 57 anos antes (com “Les quatre cents coups”, de François Truffaut), disse muito obrigado.