Joana Gorjão Henriques, in Público on-line
Aumento significativo deve-se a mudança de método usado no Índice Global da Escravatura. No mundo há 45,8 milhões de pessoas em situação de escravatura.
Os números são chocantes, sobretudo se comparados com os dois relatórios anteriores do Índice Global da Escravatura (IGE): em Portugal estima-se que existam 12.800 pessoas escravizadas, mais do que em 2014, quando eram 1400.
O facto de Portugal ter subido 35 posições no ranking dos 167 países com maior índice de escravatura — passou de 157.º para 122.º — não corresponde necessariamente a uma subida de casos, mas mais a uma afinação do método utilizado para chegar às estimativas. O IGE concluiu que os relatórios anteriores subestimaram os dados relativos a Portugal, que é agora o nono país da Europa em proporção da população em situação de escravatura (0,123%).
A escravatura moderna afecta 45,8 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo as novas estimativas. É um aumento de 28% em relação ao anterior relatório. Para a pesquisa foram feitas mais de 42 mil entrevistas em 53 línguas, realizadas em 25 países que representam 44% da população mundial.
As estimativas das taxas de prevalência — ou seja, a percentagem da população em situação de escravatura — foram baseadas nos dados destes inquéritos e os resultados foram extrapolados para os países com perfis de risco idênticos com base em 24 variáveis — Portugal, com uma taxa de prevalência de 0,123%, foi considerado idêntico ao Reino Unido, que tem uma estimativa de 11.700 pessoas escravizadas e uma prevalência de 0,018%. Nenhum dos 167 países abrangidos pelo índice está isento de escravatura, notam os autores do estudo.
“Temos melhores formas de medir e isso mostra que a situação é mais grave do que pensámos originalmente”, diz ao PÚBLICO Fiona David, directora executiva do departamento de pesquisa global da Walk Free Foundation, que produziu o IGE divulgado nesta terça-feira. “Este modelo dá-nos resultados mais precisos: em alguns países as estimativas baixaram, noutros aumentaram. A fotografia está a ficar muito mais nítida.”
Boas notícias em relação a Portugal: aparece em 6.º lugar no ranking dos países cujos governos estão a tomar mais medidas contra a escravatura, a seguir à Holanda, Estados Unidos, Reino Unido, Suécia e Austrália. Para este item foram usadas respostas a 98 indicadores de boas práticas que tivessem em conta factores como leis, apoio a vítimas ou aplicação de determinados standards no trabalho. Fiona David esteve em Portugal e aplaude a existência de um organismo de combate a este fenómeno, o Observatório do Tráfico de Seres Humanos, por exemplo. O trabalho do governo e da sociedade civil contra a escravatura, o facto de existirem abrigos para vítimas, um plano nacional que faz com que as organizações no terreno trabalhem em conjunto ou o treino para instituições que estão à frente no terreno foram factores que fizeram com que o índice atribuísse o 6.º lugar a Portugal.
A escravatura moderna foi encontrada em várias indústrias: na pesca na Tailândia, no algodão no Uzbequistão e Turquestão e na construção no Qatar. Foi ainda identificada em trabalhadores domésticos de diplomatas, em zonas controladas pelo autoproclamado Estado Islâmico e em zonas afectadas por desastres naturais, como o Nepal ou a República Democrática do Congo. “Afecta todos nós, da comida aos bens que consumimos”
O termo escravatura moderna é usado de diferentes maneiras em diferentes países, e é alvo de intensos debates. Para o IGE, escravatura moderna implica o controlo ou posse de uma pessoa, retirando-lhe a sua liberdade individual, com intenção de a explorar. As pessoas são escravizadas através de redes de tráfico humano, trabalho forçado, servidão por dívidas, casamento forçado ou exploração sexual. Em relação a Portugal, Fiona David diz que “as pessoas podem ter sido recrutadas por ofertas de trabalho falsas, são muitas vezes imigrantes, foram-lhes tirados os seus documentos ou são usados outros meios para não os deixar ir”, explica.
Guerra e migrações
Na Europa estimam-se em 1.243.400 as pessoas escravizadas, ou seja, 2,7% do total. A Macedónia tem a taxa de prevalência mais alta sobre o conjunto da população (0,639%) e o Luxemburgo, Irlanda, Noruega, Dinamarca, Suíça, Espanha, Reino Unido, França, Áustria e Alemanha o valor mais baixo (0,018%). “Apesar de ter a menor percentagem regional de escravatura moderna, a Europa continua a ser um destino, e de forma menor uma fonte, para a exploração de homens, mulheres e crianças em trabalhos forçados e exploração sexual”, lê-se no IGE.
Num relatório deste ano da Organização Internacional do Trabalho feito com imigrantes que viajaram na bacia do Mediterrâneo, 7,2% dos 2400 inquiridos tiveram experiências de tráfico de seres humanos, cita o IGE. Esta é uma das razões que leva o relatório a sublinhar que, em 2016, as vagas migratórias aumentaram imenso a vulnerabilidade à escravatura moderna. A vulnerabilidade pode ser aumentada por vários factores, como ausência de protecção, segurança física ou acesso a necessidades básicas como comida, água ou protecção médica.
De acordo com o índice, o único no mundo sobre a escravatura moderna, a Índia continua a ser o país com o maior número de pessoas escravizadas (18,3 milhões estimados), sendo a Coreia do Norte o que tem a maior prevalência (4,37% da população) e a menor resposta governamental — existe informação que aponta para que cidadãos norte-coreanos sejam sancionados pelo governo com trabalhos forçados.
A escravatura moderna foi encontrada em várias indústrias: na pesca na Tailândia, no algodão no Uzbequistão e Turquestão e na construção no Qatar. Foi ainda identificada em trabalhadores domésticos de diplomatas, em zonas controladas pelo autoproclamado Estado Islâmico e em zonas afectadas por desastres naturais, como o Nepal ou a República Democrática do Congo. “Afecta todos nós, da comida aos bens que consumimos”, lê-se.
Os dados mostram que 124 dos países analisados criminalizam o tráfico de seres humanos e 96 têm planos nacionais para tal.
“Os países que têm as maiores taxas de prevalência de escravatura são aqueles onde as sanções são menores e onde as pessoas estão mais vulneráveis por causa da pobreza, por exemplo”, diz ao PÚBLICO Andrew Forrest, fundador da Walk Free. “Estão mais propensas a envolverem-se em trabalho forçado e em redes de tráfico humano. Aí, os governos têm que tomar medidas que garantam que as pessoas são punidas.” Para o australiano, é urgente “a consciencialização global do fenómeno e da população de cada país”. “É preciso que as pessoas parem de negar que a escravatura existe.”
Notícia corrije 2,7% da população europeia para 2,7% do total e actualiza mais países europeus com taxas de prevalência menores além do Luxemburgo.