Natália Faria, in Público
Os bispos portugueses escolheram a psicóloga Rute Agulhas para liderar a nova comissão da Igreja Católica para lidar com os casos de abuso sexual de menores dentro da instituição, em substituição da comissão independente coordenada por Pedro Strecht que cessou funções logo após a apresentação pública do estudo que estimou em pelo menos 4815 as crianças vítimas de abuso desde 1950 até à actualidade.
Especializada em psicologia da justiça, a também psicoterapeuta de crianças e adolescentes tem trabalhado como perita forense na delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e é autora de vários livros e jogos pedagógicos sobre direitos das crianças, divórcio, saúde mental e prevenção do abuso sexual. O seu nome foi uma escolha directa do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, segundo adiantou ao Observador o ex-procurador-geral da República José Souto Moura, que preside à Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas criadas ao longo de 2020 para acolher e avaliar denúncias neste âmbito.
A confirmação oficial da escolha de Rute Agulhas (que, tal como Souto Moura, já integrava a comissão diocesana do Patriarcado de Lisboa) foi feita a meio da tarde desta quinta-feira, “após consulta aos bispos diocesanos e auxiliares”, segundo uma nota da CEP, que adianta que “a constituição do grupo e o projecto serão analisados” na segunda-feira, dia em que arranca a assembleia plenária da CEP. A protecção de menores e adultos vulneráveis integra, aliás, a agenda do encontro de quatro dias, no fim do qual se espera que a Igreja faça um novo ponto da situação relativamente às medidas adoptadas para proteger as vítimas de abusos cometidos por clérigos portugueses.
A constituição de uma nova comissão foi veemente reclamada no relatório Dar Voz ao Silêncio, sobretudo porque as queixas de vítimas continuaram a chegar mesmo depois de a anterior comissão ter cessado funções. A crer na promessa feita por D. José Ornelas, o novo grupo de trabalho terá “credibilidade” e “uma capacidade autónoma de apresentação de projectos e de acompanhamento” das pessoas vítimas de abuso.
À nova equipa competirá, além da recolha de novas denúncias, o encaminhamento dos casos para a justiça civil, para eventual abertura dos respectivos processos-crime, bem como para as estruturas eclesiásticas de investigação e julgamento. Mas a restante composição do novo grupo de trabalho não deverá ser conhecida antes do dia 17, e, a respeitar-se a recomendação do grupo liderado por Pedro Strecht, a nova equipa integrará psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, juristas e sociólogos, preferencialmente externos à Igreja Católica.
Tendo em conta as recomendações do relatório, poder-se-á dizer que o novo grupo ficará incumbido de propor as soluções a adoptar, “nomeadamente quanto ao tipo de medidas a aplicar ao infractor, à eventual indemnização das vítimas e ao acompanhamento de que estas possam carecer”. E o próprio presidente da CEP já disse publicamente que, ao contrário da comissão anterior, cuja missão principal foi a de fazer um levantamento histórico dos abusos sexuais dentro da Igreja, o novo grupo de trabalho terá um “carácter operativo”. D. José Ornelas nunca chegou a precisar, porém, de que modo irá o novo grupo articular-se com as comissões diocesanas de protecção de menores.
Estas comissões começaram por ser compostas em boa parte por clérigos, mas nas últimas semanas os membros do clero têm sido substituídos por profissionais da sociedade civil, por indicação da CEP. Objectivo: permitir que eventuais vítimas se sintam menos desconfortáveis na denúncia dos abusos de que foram alvo, deixando-as “mais tranquilas e à vontade”, conforme precisou Paula Marinho, secretária da equipa de coordenação nacional destas comissões, no início de Março, ao PÚBLICO.
A necessidade de mudança surgiu da constatação de que, desde que foram criadas nas 20 dioceses territoriais portuguesas, aquelas comissões tinham somado apenas 33 denúncias, um número que contrasta de modo flagrante com as mais de 4815 crianças que foram vítimas de abusos cometidos por clérigos.
A CEP não divulgou ainda se acatará a recomendação da equipa de Pedro Strecht de criação de uma linha telefónica de atendimento às vítimas.
Eleições na CEP
À margem do flagelo dos abusos dentro da Igreja, as atenções dos bispos estarão centradas na eleição dos novos órgãos da CEP. E a dúvida é se o bispo de Leiria-Fátima se manterá ou não na presidência do organismo episcopal. D. José Ornelas assumiu o cargo em meados de 2020, em plena pandemia, e a tradição dita que o mandato de três anos seja renovado por outro de igual duração. Porém, nos últimos meses, rumores nunca confirmados indicam que este terá feito saber que não se sente em condições de continuar na função, sobretudo depois de ter visto o seu nome envolvido num alegado caso de encobrimento de abuso sexual enquanto provincial dos dehonianos.
A CEP tem, actualmente, na vice-presidência o bispo de Coimbra, D. Virgílio Nascimento. Do seu Conselho Permanente fazem ainda parte D. Manuel Clemente, enquanto cardeal-patriarca de Lisboa, além de mais quatro bispos eleitos pelo plenário como vogais (Porto, Braga, Santarém e Évora). Os órgãos são eleitos por voto secreto e os cargos só podem ser exercidos durante dois mandatos consecutivos.
Esta assembleia plenária dos bispos portugueses incluirá ainda a realização de uma missa no dia 20, inserida na jornada nacional de oração “pelas vítimas de abusos sexuais, de poder e de consciência na Igreja”, pelas 11h00, na Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima.
Notícia actualizada às 18h00 com a confirmação oficial da CEP