17.4.23

Menos de dois em cada dez inquéritos por assédio sexual dão origem a acusação

Aline Flor, in Público



Assédio sexual é proibido pelo Código do Trabalho, mas não existe um crime específico no Código Penal. Inadequação da lei pode explicar falta de queixas. Poucas chegam a tribunal.


Apenas uma em cada dez queixas por eventual prática do crime de importunação sexual, que inclui “actos de carácter exibicionista, propostas de teor sexual ou [constrangimento] a contacto de natureza sexual”, resultaram em acusações.


No que toca ao crime de coacção sexual — em que está em causa o “[constrangimento de] outra pessoa a praticar acto sexual de relevo” e que pode incluir também situações de assédio sexual —, a proporção sobe para uma em cada cinco queixas.


Em Portugal não existe no Código Penal um crime de “assédio sexual”, conforme o previsto na Convenção de Istambul. Ou seja: um “comportamento indesejado de natureza sexual, sob forma verbal, não-verbal ou física, com o intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo" que "seja passível de sanções penais ou outras sanções legais.” Até hoje, tem-se enquadrado este tipo de condutas nos diversos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como a importunação sexual, a coacção sexual ou mesmo violação.

De acordo com dados do Ministério Público relativos ao intervalo entre 2016 e 2020, houve em média 889 inquéritos instaurados por ano pelo crime de importunação sexual, com uma média de 103 acusações deduzidas, ou seja, 11,5% — esta proporção é apenas uma aproximação, já que os processos podem demorar vários anos a resultar numa acusação.


Durante o mesmo período, houve uma média anual de 151 inquéritos pelo crime de coacção sexual. Cada ano, são deduzidas em média 31 acusações pelo mesmo tipo de crime.

Somando ambos os tipos de crimes, constata-se que só 13% dos inquéritos associados à alegada prática de assédio sexual chegam a tribunal.

O tema volta a estar na ordem do dia numa altura em que denúncias de assédio envolvem dois investigadores do Centro de Estudos Sociais, em Coimbra, Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins.

Vazio legal

Rita Mota Sousa, magistrada do Ministério Público nos Açores e membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (​APMJ), defende a criação de “um tipo penal de assédio sexual”, de forma a melhor proteger as vítimas — também poderia ser “pedagógico para a comunidade, porque traça limites e fronteiras” nas relações sociais. “Há um vazio legal no que diz respeito à punição do assédio sexual. Na fase de evolução em que nos encontramos, já não se justifica que esse vazio ainda exista.”

Nota ainda que a proporção de acusações deduzidas em relação ao número de inquéritos abertos não está muito longe dos valores de acusação para a generalidade dos crimes, mas sublinha que “seria desejável que nos crimes sexuais, pela sua gravidade e pelo impacto nas vítimas, todas as denúncias se conseguissem provar e que fossem julgadas”.


13% Somando ambos os tipos de crimes, constata-se que só 13% dos inquéritos associados à alegada prática de assédio sexual chegam a tribunal.


A magistrada descreve ainda que, da sua experiência pessoal, “a grande maioria das queixas apresentadas por importunação sexual correspondem à prática de actos exibicionistas”. Ou seja, o crime no qual se depositam mais expectativas em relação ao assédio pode não estar, na realidade, a corresponder a isso.

A docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Inês Ferreira Leite concorda que o crime de importunação sexual, tendo sido pensado para o “assédio individual”, em contexto de rua, não é adequado para situações de assédio em contexto institucional. Recorda, contudo, que há situações de assédio que se enquadram no tipo previsto nos crimes de coacção sexual ou até mesmo de violação. Queixa-se, aliás, de que “alguma doutrina e a jurisprudência esqueceram-se” de que estas podiam caber nestes crimes, associando-se o assédio sexual apenas ao crime de importunação sexual.

O que falha, então?

Para Inês Ferreira Leite, há uma falha das autoridades na condução dos processos. Quando era advogada, descreve, acompanhou situações de assédio sexual em contexto institucional em que a questão ficou resolvida internamente, na empresa, em dois ou três anos. “No Ministério Público ficou parado.” Para a docente, “não há prioridade na investigação destas situações”. No que toca aos crimes de importunação sexual, em particular, “não há diligências, pede-se à vítima para trazer tudo”.


A magistrada Rita Mota Sousa, por outro lado, nota que “a investigação e o processo, por muito cuidado que se tenha, têm sempre um aspecto hostil para a vítima”, o que tira alguma motivação para apresentar queixa ou suportar o processo de investigação. Mas lança uma nota optimista: “Vejo de um modo geral no Ministério Público uma preocupação de fazer caminho para evitar a revitimização… Só não se fará mais por falta de meios”, assegura.

Para a magistrada, outra questão importante que pode mudar nos crimes de violação e de coacção sexual é a sua conversão em crimes públicos, o que permitiria maior autonomia para o Ministério Público e daria, defende, um sinal à sociedade de que o sistema penal está a ouvir estas vítimas: “Isto deixa de ser tratado como uma questão que está na disponibilidade privada, é [passa a ser] uma questão pública importante."


Não há prioridade na investigação destas situaçõesInês Ferreira Leite, professora


“Quando começamos a levantar o véu, os casos vão aparecendo em todo o lado”, afirma, recordando o caminho feito no que toca ao crime de violência doméstica, tornado público, com uma expansão dos mecanismos de protecção das vítimas. “O crime de violência doméstica não cresceu, o que cresceu foi a denúncia”, sublinha. “Com os crimes sexuais é a mesma coisa.”


Nenhuma denúncia à CITE

O assédio sexual em contexto laboral é também proibido pelo Código do Trabalho. Apesar de ser uma contra-ordenação muito grave, é uma sanção que é aplicada à empresa, “pelo falhanço nos deveres de vigilância”, e não ao agressor. Ou seja, explica Inês Ferreira Leite, “as pessoas concretas que praticam não respondem nos termos do Código do Trabalho”.

Uma antiga magistrada judicial descreve ao PÚBLICO uma "grande falta" de denúncias, o que a surpreende de alguma forma, dado que a lei portuguesa confere (pelo menos em teoria) uma protecção quase em toda a linha nestes casos: na lei laboral, na lei criminal, na Constituição — através da discriminação em razão de género ou da própria dignidade da pessoa humana — e também nas directivas comunitárias que Portugal tem que cumprir.

Mas os números de denúncias feitas à Comissão para a Igualdade no Trabalho (CITE) são desoladores: entre 2018 e 2022, foram recebidas zero queixas por assédio sexual. Nesses cinco anos, a comissão recebeu 27 queixas por assédio moral, com um pico em 2019.


“Há um vazio legal no que diz respeito à punição do assédio sexual. Na fase de evolução em que nos encontramos, já não se justifica que esse vazio ainda exista"


Rita Mota Sousa, magistrada do MP


Além das queixas formais, a comissão também presta atendimento telefónico, no âmbito do qual foram atendidas pela equipa jurídica 30 situações de assédio moral e sexual no local de trabalho no ano passado. Em resposta ao PÚBLICO, a presidente da comissão, Carla Tavares, refere que “chegam à CITE denúncias de comportamentos que consubstanciam a prática de assédio laboral, praticados por entidades ou pessoas de natureza e origem diversa, inclusive do ensino superior”.

Porque haverá, então, tão poucas denúncias? Haverá uma série de questões relativas ao contexto em que estes casos ocorrem, em que as desigualdades de poder que permeiam as situações de assédio são as mesmas que tornam a denúncia dos casos muito difícil; aliás, os poucos casos analisados pelos tribunais do trabalho tendem a ser instaurados apenas quando há um despedimento (ou outra forma de ruptura da relação laboral), segundo a magistrada jubilada.



Além disso, é preciso iniciativa, não apenas das vítimas para denunciarem, mas também das polícias para a investigação, do Ministério Público para a gestão dos processos e dos próprios advogados. Por fim, claro, dos juízes — mas estes, que não têm “iniciativa processual”, estão já no fim de uma linha em que estes processos vão perecendo.

Para Inês Ferreira Leite, ao olhar para o assédio sexual em contexto académico, há três abordagens a ter em conta: a questão da lei, já abordada, é apenas uma destas dimensões. Seguem-se os mecanismos de queixa, que garantem vias de denúncia através de organismos externos, independentes da instituição. E, por fim, compreender porque é que isto acontece e como é que isto acontece no contexto específico da academia — ou seja, “quais são os factores típicos da vida das universidades para que aconteça desta forma”.