Ana Cristina Pereira, in Público online
Aproveitamento pode começar no país de origem ou em Portugal. Evelin pagou 180 euros para ter o NIF.
Evelin Santos não vai desistir da manifestação de interesse que apresentou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e pedir um certificado de autorização de residência Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), como milhares fizeram no último mês. “Vou esperar. Dizem que isso é só para facturar, que nem todos os países estão cientes.”
O receio da jovem de 29 anos vem-lhe da experiência. Já se sentiu alvo de burlas várias vezes desde que aterrou no aeroporto internacional de Lisboa com a irmã, três anos mais nova, no final de 2021.
Enquanto brasileiras, bastava-lhes o carimbo no passaporte para permanecerem 90 dias como turistas em Portugal. Para ficar a viver e a trabalhar, porém, teriam de se inscrever nas Finanças e na Segurança Social, de abrir actividade como trabalhadoras independentes ou de arranjar contrato de trabalho e de ir ao SEF manifestar interesse em obter autorização de residência.
Começando pelas Finanças, precisavam de um representante fiscal, que podia ser um cidadão português ou estrangeiro com autorização de residência. “A gente não conhecia ninguém”, recorda. Indicaram-lhe uma pessoa que “ajudava quem estava nessa situação”. “Ela disse que era advogada. Cada uma pagou 180 euros.”
A irmã, Brenda, corrobora a história: “No começo, pensei que estava super em conta, porque não tínhamos noção dos valores [praticados]; depois, vimos que tínhamos sido quase assaltadas.”
Ainda há pouco, um amigo de ambas, Kauan Santana, de 27 anos, e o companheiro, de 37, chegados a Aveiro com um visto de procura de trabalho, pagaram 30 euros cada a um homem que desempenhou o papel de representante fiscal. Diz o rapaz que o homem estava perto do balcão do SEF e que lhe foi indicado pela própria funcionária.
É um esquema comum. Ao trabalhar para a associação Renovar a Mouraria, que dirige o Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes Lisboa-Mouraria, a jurista brasileira Larissa Nicolosi tem conhecido muitos imigrantes que pagaram para obter o NIF. E o problema não é só o valor. “O representante fiscal recebe a chave de acesso às Finanças. Tem acesso a dados pessoais. Se depois não fornecer esses dados, a pessoa não sabe onde estão. E tem dificuldade em pedir nova senha.”
Também é frequente haver quem faça negócio com a necessidade de apresentar um atestado de residência ao SEF. “As coisas estão feitas de forma inadequada”, considera Timóteo Macedo, da Associação Solidariedade Imigrante. “Não devia ser preciso um atestado de residência da junta de freguesia para fazer uma manifestação de interesse [de autorização de residência]. A pessoa acaba de chegar, não tem duas testemunhas. As máfias aproveitam-se. Vêem as pessoas desesperadas e cobram dinheiro para assinar um papel.”
O funcionamento do SEF não ajuda. “As pessoas ligam 400, 500, 600 vezes e não conseguem fazer agendamento no SEF”, torna Larissa Nicolosi. “A forma como o SEF comunica é através de posts no Facebook: diz quantas vagas abriu e para que tipo de autorização de residência.” Há grupos organizados que estão atentos e apanham boa parte delas para vender. Na sua opinião, “o facto de no site do SEF nem haver informação de que não há vagas é falta de transparência”. E “a falta de transparência põe os imigrantes numa situação de maior vulnerabilidade, de maior dependência de outras pessoas.” “Quando a informação não chega de forma eficiente, há pessoas que se aproveitam.”
Os pedidos de novas autorizações de residência CPLP não escapam a estes esquemas. “Muitas pessoas não têm computador, não têm literacia digital, algumas nem sabem ler”, observa Ana Mansoa, directora executiva do Centro Padre Alves Correia, entidade responsável por um Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes Lisboa-Estrela.
Às vezes, o aproveitamento começa ainda no país de origem, sublinha Ana Mansoa. Conhece imigrantes que pagaram avultadas quantias a outros já residentes para lhes tratarem dos documentos e da habitação ainda antes de embarcar. E imigrantes que ficaram a pagar uma percentagem do seu salário.
Salário por pagar
“Às vezes, as pessoas não sabem onde procurar informação correcta”, comenta Bruno Gutman, advogado luso-brasileiro especializado em imigração. “Hoje, na Internet é fácil divulgar qualquer coisa.”
Já denunciou à Ordem dos Advogados diversas pessoas. “Tem muita gente na Internet que não é advogada e fica falando de lei de imigração. Não tem conhecimento e fica na Internet dando informação desencontrada. Conheço pessoas que vendem e-books sobre como imigrar para Portugal, como tirar o NIF, o NISS, o número de utente do SNS. Essas pessoas vendem esses serviços. Estão a praticar procuradoria ilícita. Isso é crime.”
Alguns têm protagonizado autênticas burlas. Pela Internet já circula até um falso email sobre as novas autorizações de residência CPLP. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) até publicou um alerta na sua página na rede social Facebook: “Alertamos para a circulação de falsos emails, alegadamente gerados pelo Portal CPLP para efeitos de registo e emissão de autorização de residência.”
Evelin e a Brenda estão até hoje sem saber exactamente qual a verdadeira qualificação da mulher que cobrou 180 euros a cada uma para requerer o NIF e queria cobrar outros 100 para tratar da manifestação de interesse. “Nem sei se ela é advogada”, diz Evelin. “Primeiro, ela atendeu a gente numa sala de um prédio. No outro dia que a gente foi lá, ela estava num salão de beleza. Então não sei o que ela é.”
Todo o dinheiro lhes fazia falta. As suas irmãs vieram de Santos, litoral de São Paulo, à procura de uma vida melhor. “Está ficando muito perigoso.” Venderam as suas coisas e meteram-se num avião. “A gente não veio com muito dinheiro. A gente queria trabalhar logo.”
Uma tormenta o primeiro trabalho, numa lavandaria. “A gente não tinha o número da Segurança Social. A gente não tinha contrato.” “Fiquei três meses”, conta Evelin. “O dono chegou a me pagar. O terceiro mês é que não pagou. A minha irmã ficou 45 dias e ele não pagou. Ele pagou-me e eu perguntei. ‘E a minha irmã?’ E ele falou: ‘Ai não, já paguei você, é na mesma casa.’ Eu não podia ficar num lugar onde ele escolhia quem pagava.”
Agora, têm NIF, NISS, número de utente do SNS e contrato de trabalho. Brenda trabalha numa cantina e Evelin numa sex shop. “Agora, tudo está óptimo”, diz Brenda. “A gente gosta bastante do país”, torna Evelin. “A segurança é uma das coisas que a gente mais gosta. A gente veio com o intuito de trabalhar e ir para outro país, mas a gente gostou e ficou, apesar de o aluguer ser bem caro.” Muitos não ficam, voltam a fazer as malas e partem para outros países.
Qual a diferença entre cartão de residência e certificado CPLP?
A proposta parece irrecusável para quem espera há anos pela autorização de residência por via dos artigos comuns. Inscrevendo-se e pagando 15 euros, o mesmo custo do cartão de cidadão, os imigrantes da CPLP podem obter autorização de residência em 72 horas.
Antecipando o desmantelamento do SEF, a 13 de Março foi lançada a plataforma on-line autorização de residência CPLP. No afã de despachar pendências, podem aceder cerca de 150 mil cidadãos da CPLP que apresentaram manifestação de interesse em 2021 e 2022. O mesmo podem fazer cidadãos da CPLP que obtiveram um visto consular no país de origem de 31 de Outubro para cá.
Até 12 de Abril, o SEF emitiu 103.572 referências de pagamento, tendo já concedido 93.209 autorizações. Os brasileiros protagonizam o grosso dos pedidos (86,5%), seguidos de muito longe pelos angolanos (3,8) e pelos são-tomenses (3%).
Não é automático, como se diz. São consultadas bases de dados para verificar se não há motivo de recusa. Até agora, segundo o SEF, “foram detectados 6.043 alertas, que obrigaram a uma consulta mais detalhada para aferir, ou não, a atribuição de uma autorização de residência CPLP”.
Mas nem todos os que têm processos pendentes irão avançar. Bruno Gutman, advogado luso-brasileiro especializado em imigração, conhece várias pessoas que preferem esperar pelo resultado da manifestação de interesse. À evidente vantagem da rapidez contrapõem o que percebem como desvantagens diversas.
Através da manifestação de interesse, recebem um cartão de identificação. Através do Portal Autorização de Residência CPLP, uma folha que devem imprimir e que devem apresentar sempre acompanhado do passaporte. O cartão é válido por cinco anos e o certificado por um ano, renovável por períodos de dois anos.
Não é só isso. Quem tem autorização de residência em Portugal pode circular pelos países do Espaço Schengen. O cartão de autorização de residência é reconhecido e aceite pelas autoridades fronteiriças de qualquer Estado-membro. “A ‘declaração’ de residência CPLP não é um documento padronizado na UE”, salienta Bruno Gutman. “Aqui está a dúvida. Não está esclarecido se vai ser possível circular no Espaço Schengen.”
Poderá estabelecer-se um paralelo com o regime de protecção temporária criado para cidadãos da Ucrânia, que inclui título de residência temporária, número de identificação fiscal (NIF), um número de identificação da Segurança Social (NISS), um úmero de utente do Serviço Nacional de Saúde. Portugal teve de comunicar aos outros Estados-membros a validade daquele título de residência, já atribuído a cerca de 59 mil pessoas. Até agora, não fez o mesmo com a declaração CPLP. Ana Cristina Pereira