Por João Manuel Rocha (texto) e Miguel Madeira (fotos), em Cabo Verde, in Jornal Público
Engenho, iniciativa e entreajuda parecem ser a receita cabo-verdiana para procurar futuro melhor. Com a terra que os viu nascer no pensamento, como confirmam Elias e Isilda
Como se de mestre cozinheiro se tratasse, acrescenta peixe que lhe deram no mercado, cem escudos de azeite comprado, um pouco de calda de tomate, um dente de alho, sal e um pouco de água para refogar. Mais tarde, há-de juntar-lhe arroz. No areal da baía do Mindelo, à sombra de uma espinheira, vista deslumbrante sobre a vizinha ilha de Santo Antão, paredes-meias com o luxuoso complexo turístico Ponto de Água, ganha forma o arroz-malandro que há-de ser para Elias a única refeição certa do dia.
Ar de menino dócil, ninguém diria que este "badio", como chamam aos naturais de Santiago, era na mais tenra infância, vivida na Cidade da Praia, conhecido pelo "nominho" de "Arnold", de Arnold Schwarzenegger, pelo carácter brigão. É o que conta Elias. A briga é agora pelo sustento diário. "À noite, posso tomar uma sandes ou, se não tiver dinheiro, vou deitar assim."
As quantidades mínimas de ingredientes do almoço foram-lhes oferecidas, a ele e ao amigo Hernâni, pelas vendedoras de verduras. "Para nós, dão", explica. Afinal, Elias, de 17 anos, é para elas um parceiro: vende na rua sacos de repolho, tomate, pepino, abóbora, pimentão, batata-doce, mandioca ou feijão-verde. Cada um a cem escudos cabo-verdianos, 80 para elas, 20 para ele. É com esse dinheiro, e com os 200 escudos que recebe quando lava algum carro, que paga o azeite e o arroz. E come por vezes um prato de cachupa e uma caneca de café que lhe custam 150.
Reunidos os ingredientes, há que procurar lenha. Acaba por conseguir pedaços desperdiçados de barrotes das obras de água e saneamento que uma empresa italiana está a fazer na cidade com financiamento da União Europeia. E avança com a preparação do almoço. Para ele e para Hernâni, de 19 anos mas ainda mais ar de criança, filho do Monte Sossego, a trabalhar no mar "desde pequenotinho", como explica Elias, traduzindo o falar crioulo do companheiro.
O espírito de iniciativa dos cabo-verdianos é igualmente bem visível no popular mercado de Sucupira, na Cidade da Praia. O caso de Isilda, que estava de novo ontem no grande mercado popular da capital, mostra-o bem.
As couves e o repolho que tem à venda são daqui mesmo, de Santiago, e o sal que vende a 50 escudos o saco de litro mandou-o vir da ilha a que deu nome. O resto do que tem sobre a bancada metálica e as caixas de madeira - abóbora, batata-doce e cebola-terra - vem, tal como o carvão, que ontem não tinha para vender, de barco da mais fértil Ilha de Maio, onde nasceu há 49 anos e ano após ano volta. Foi-lhe mandado por familiares e amigos, que também ganham com este circuito informal de distribuição.
Isilda Oliveira explica que o negócio da maior parte dos cabo-verdianos que vieram de outras ilhas e vendem no Sucupira "é mais roupa". Produtos da terra, garante, só os de Santiago e ela. Essa foi a forma que arranjou de aproveitar o potencial agrícola que não tinha escoamento na sua ilha e de, com ele, abrir perspectivas para si e para os seis filhos que deu ao mundo. Foi por isso que se mudou em 1986, partindo, como há gerações os cabo-verdianos fazem, para outras ilhas ou para fora do país. "Lá é bom para agricultura, mas produtos não têm saída. Cá a vida é melhor. Aqui, em Santiago, dá mais." Na capital, vivia, segundo estimativas oficiais de 2008, quase um terço do meio milhão de pessoas que constituíam a população cabo-verdiana.
Elias é mais viajado que Isilda. Já conheceu cinco ilhas do arquipélago desde que, dos 13 para os 14 anos, depois de a mãe morrer, deixou a escola: filho de pais separados, primeiro foi para o Sal, onde vive uma irmã e chegou a trabalhar como ajudante de cozinha e num hotel, a catar lixo e a arrumar cadeiras. Depois, coisa de menino, esteve três dias sem ir trabalhar e a "senhora Ângela" disse que assim não podia ser. Não gostou de ouvir e partiu com um amigo à aventura. Ao fim de "dois dias" já se tinha arrependido porque, diz agora, deixou para trás o tempo em que "estava forte, gordo". São Nicolau, Boa Vista, São Vicente, Santo Antão e, de novo, São Vicente. Gostava de ver um dia Portugal, Brasil, Espanha, América.
Mas, ao mesmo tempo, este miúdo, agora no Mindelo, também parece cansado da vida itinerante e de um quotidiano de incerteza e esforço permanente para ter o que comer. "Depois que a minha mãe morreu, a vida foi ficando difícil."
A atenção à população mais jovem é apresentada como uma das prioridades sociais das autoridades cabo-verdianas. Um relatório recente do Fórum Africano de Políticas para Crianças refere que o país é dos que, em todo o continente, mais investem na infância, mas Elias passou ao lado. Já falou com o comandante de um navio ancorado no porto e está a tentar que o levem de volta ao Sal, para "ver como as coisas estão". Mais tarde pensa voltar à Praia.