in Comissão Nacional de Justiça e Paz
Vivemos numa fase particularmente grave da nossa história. As causas, mais ou menos conhecidas, são diversas, internas umas e externas outras, recentes umas e recuadas outras. A sua análise é necessária para que compreendamos o que se passa entre nós e no mundo, mas não é este o tempo de repartir responsabilidades. Uma coisa é certa e merece realce: muito se deveu a comportamentos reprováveis, guiados pela sede de lucro imediato e a perda da noção dos limites na avaliação do risco. E quando se diz que a crise também é oportunidade, entende-se que aqueles comportamentos e motivações, e outros correlacionados, têm de mudar radicalmente, para que a crise possa ser encarada como desafio.
Não se trata de arranjos cosméticos de superfície, mas mudanças transformadoras, como se depreende destas palavras de Bento XVI: "[H]á que avaliar atentamente as consequências que podem ter sobre as pessoas as tendências actuais para uma economia a curto se não mesmo curtíssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunções e desvios"[1].
Quer isto dizer, além do mais, que o modelo de desenvolvimento da sociedade portuguesa terá de assentar, de modo inequívoco, nos três critérios fundamentais nesta matéria: a justiça, a solidariedade e o bem comum. E significa, sobretudo, que não é aceitável que estes critérios fundamentais sejam postos entre parêntesis durante o tempo em que são precisas medidas e políticas mais austeras para restituir os equilíbrios económicos e financeiros perdidos. Pelo contrário, é nesta fase da vida do país que a justiça, a solidariedade e o critério do bem comum devem estar mais presentes no processo de definição das novas políticas, evitando sacrifícios maiores aos sectores da população que vêm sendo gravemente injustiçados.
A Comissão Nacional Justiça e Paz considera inaceitável o corte ou congelamento dos baixos salários, pensões ou outras prestações sociais. Os recursos necessários deverão advir dos estratos de rendimentos (do trabalho e do capital) mais altos.
Mais recentemente, sobreveio uma crise político-partidária, a qual conduziu ao recurso à "ajuda" externa, entendida como envolvendo entidades europeias e o Fundo Monetário Internacional. Agora, é sobretudo no âmbito das negociações entre os representantes da sociedade e do Estado com essas entidades que os valores fundamentais acima referidos acabarão por ser acolhidos ou rejeitados. Queremos afirmar firmemente que temos fundadas razões para pensar que valores preteridos neste contexto serão, de facto, valores rejeitados. Por outro lado, os intervenientes no processo de decisão não se iludam quanto à alegada "neutralidade" técnica das suas posições. Por detrás da técnica, está sempre a ideologia de cada um.
O desemprego e o emprego precário são, sem dúvida, dos aspectos mais graves da presente crise. Importa, por isso, associar medidas conducentes à redução dos défices económicos e financeiros a políticas de crescimento económico, gerador de emprego e redutor das desigualdades de rendimento e riqueza. Para a grande maioria das pessoas, o trabalho é o principal meio de subsistência e um factor relevante de inclusão social. Em sentido mais amplo, salientou João Paulo II: "A Igreja está convencida de que o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra"[2].
Os momentos de crise são propícios ao surgimento de ideias que põem em causa o Estado social. O debate sobre o assunto, entre nós, tem enfermado de começar e terminar pela «sustentabilidade financeira», que é aspecto sem dúvida importante, mas que não dispensa que se tenha em conta que, por detrás das finanças, existem opções políticas que ditam soluções diversas e que nunca são explicitadas.
É corrente ouvir-se, a propósito da crise, que «todos somos responsáveis por resolvê-la». Não discordamos da ideia, desde que a qualifiquemos. É que quer a crise quer o processo que nos conduziu a ela tiveram e têm ganhadores e perdedores. Não é, pois, legítimo responsabilizar indiscriminadamente toda a sociedade por uma situação que tem responsáveis e vítimas.
Brevemente, teremos eleições legislativas. Parece unânime que o governo que sair dessas eleições tenha de ter uma base de apoio suficientemente alargada para viabilizar as medidas difíceis que tudo leva a crer que serão tomadas. Seja qual for a modalidade em que vierem a congregar-se os partidos apoiantes do futuro governo, o povo português certamente espera que a campanha eleitoral seja esclarecedora sobre a posição dos partidos concorrentes à luz da justiça social, da solidariedade e do bem comum. Tem-se dito que o essencial das propostas dos principais partidos políticos será comum, na medida em que corresponderá ao que resultar das negociações com as instituições europeias e o FMI. Cremos que será assim, mas não totalmente. Mesmo para além do que seja «imposto» pelos negociadores externos, os partidos com vocação de governo têm dado sinais de divergências ― em domínios como os do Estado social (designadamente a saúde, a educação e a segurança social), das privatizações, das leis laborais, etc. ― em relação às quais se espera que tenham a coragem de serem claros durante a campanha eleitoral.
Uma nota sobre o contexto internacional que, em boa medida, condiciona esta fase histórica que Portugal atravessa.
Pelo que respeita à Europa, urge criar uma cultura de solidariedade entre os Estados-membros e destes com o resto do mundo, bem como mecanismos que a assegurem na prática, nomeadamente no que respeita aos imigrantes.
Mesmo que todas as medidas necessárias sejam cumpridas plenamente, persiste o risco de voltarmos a uma situação semelhante ou pior do que a actual, em Portugal, na Europa e no Mundo, caso se não alterem os relacionamentos politico e económico internacionais, com particular relevância para as interligações que têm por centro o sector financeiro.
Por outro lado, impõem-se uma supervisão mais eficiente do sector financeiro, quer a nível nacional quer ao nível internacional , com base em regras novas e mais exigentes, expurgando-o das suas incursões no domínio da especulação pura, e terminando com o actual quadro de relacionamento entre o sector financeiro e as entidades que se dedicam à classificação do risco de produtos financeiros, empresas e Estados, com vista a retirar-lhe a opacidade que o caracteriza e a eliminar os conflitos de interesse que muito põem em causa a bondade dos seus julgamentos.
Uma palavra final dirigida aos nossos irmãos e irmãs na fé. É com pena que verificamos que nos encontramos tão divididos como a generalidade do povo português. Reconhecemos no pluralismo um valor da mais alta relevância. Por outro lado, porém, pensamos que é um grave contra-testemunho não dialogarmos sobre as bases evangélicas das nossas posições sociopolíticas e não procurarmos os entendimentos possíveis, nem oferecermos apoio transparente de retaguarda aos cristãos mais comprometidos na vida política e social.
Abril de 2011
COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ