6.4.23

Fim da linha telefónica para denunciar abusos sexuais na Igreja deixa vítimas sem orientação

Céu Neves, in DN


Comissão Independente ouviu quem foi abusado e estão preocupados por terem deixado de o poder fazer. Bispos respondem que dioceses recebem esses casos. Não têm confiança para falar, alegam peritos.


Os membros da Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja revelam preocupação pelo facto de as vítimas deixarem de ter uma linha telefónica de apoio. Os contactos de Dar voz ao silêncio deixaram de funcionar a 13 de fevereiro, quando a CI deu por terminada a investigação. A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) contrapõe com a existência das estruturas eclesiásticas. "As pessoas não se vão dirigir às comissões diocesanas para falar, é algo que já está provado, isso não vai acontecer", argumenta fonte da CI.


O número de telefone 91 711 00 00 deixou de ter um interlocutor a no passado dia 13 de fevereiro. É possível deixar uma mensagem, mas ninguém a vai receber, confirmou ao DN a assessoria da CEP.


Os membros da CI estão preocupados pelo facto de não se ter avançado nesta matéria. "Passaram quase dois meses e as vítimas de abusos sexuais na Igreja não têm um sítio a que possam recorrer. Continuamos sem resposta a este nível e é preocupante, quer sejam novas vítimas ou antigas. Propomos uma nova comissão para continuar o nosso trabalho e parte dele é escutar as vítimas, atuais e futuras. Pode não ser um telefone, mas essa comissão tem por obrigação, no nosso entender, continuar a apoiar quem se dirigiu a nós e testemunhou, a prevenir o problema e auscultar as vítimas novas"


A direção da CEP argumenta que as comissões diocesanas de proteção de menores nunca deixaram de estar ativas. "Desde a data de criação, em 2019, todas as dioceses estão disponíveis para acolher qualquer denúncia de alegado abuso de menores ou de adultos vulneráveis, seguindo o manual da Santa Sé para estas situações. Neste momento, são as comissões diocesanas que permanecem disponíveis. Os contactos podem ser consultados na página web de cada uma das dioceses [21] e também em conferenciaepiscopal.pt."

Mas uma das conclusões a que chegaram os peritos da CI é que quem foi abusado e, na maior parte das vezes por um padre, não têm confiança para se dirigir às comissões diocesanas. Aliás, alguns dos testemunhos de abusos revelam agressores entre os membros dessas comissões , como relataram.

"Levantámos o problema e fizemos o diagnóstico da situação. Uma das nossas propostas era a criação de uma nova comissão e, como ainda não foi formada, as pessoas não têm onde se dirigir. A criação de uma linha telefónica é função da nova comissão", defendem os membros da CI.

365 chamadas

Algo que ainda não aconteceu. A CEP invoca o comunicado do dia 14 de março sobre esta matéria, sem esclarecer o que é que já foi feito. "Estamos a encetar contactos para a criação de um grupo responsável pelo acolhimento e acompanhamento das vítimas. Este grupo operativo, com caráter de autonomia, constituído por pessoas que garantam credibilidade e confiança perante as vítimas, será articulado com a Equipa de Coordenação Nacional e com as Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis."

O coordenador nacional é o ex-procurador-geral da República Souto Moura que, recentemente, passou a dirigir a comissão diocesana do Patriarcado. Isto depois de a CEP ter decidido que as comissões diocesanas deixariam de incluir "assistentes eclesiásticos", o que, de resto, era uma das críticas da CI. Nem todas as dioceses já substituíram esses elementos.

Protocolo de atendimento

A linha telefónica 91 711 00 00 funcionava praticamente 24 horas por dia, uma vez que depois das 20.00, as chamadas iam para o gravador de mensagens, sendo devolvidas posteriormente. Este trabalho era feito por Filipa Tavares, membro da CI, assistente social com formação em terapia familiar. Era apoiada por um especialista externo ao núcleo da CI, com formação e prática em psicologia clínica. E essa é outras das questões a ter em conta neste tipo de atendimento: a vítima encontrar alguém que esteja sensibilizado para esta temática.

"Não se tratava de uma linha de apoio psicológico ou de emergência em geral, mas foi sendo ensaiado, construído e seguido um protocolo de atendimento que acolhesse este primeiro e essencial momento de escuta de muitos que contactaram em evidente sofrimento e expectativa emocional, tantas vezes logo percetível pelo tom de voz, pela hesitação em falar e sobre o que falar. Considerou-se fundamental dar um espaço contentor e respeitador do ritmo e capacidade de cada qual em verbalizar situações que também, em muitos casos, nunca anteriormente tinham sido reveladas, como assegurar a disponibilidade total para outro qualquer contacto posterior, o qual, aliás, veio a acontecer em muitos casos e funcionou como um esteio de suporte em momentos de oscilação ou até de "crise" emocional de bastantes pessoas vítimas", refere o relatório final da CI.

Nestes casos eram contactados por vítimas que falavam na primeira pessoa e as chamadas duravam entre 40 e 90 minutos. No final, perguntava-se como a pessoa se sentia. As respostas incluíram: "Falar é um ato libertador, obrigado", "Temos que dar voz a estes assuntos", "Agora o problema passou a não ser só meu", "Não queria morrer sem contar o que me aconteceu", "Sinto-me aliviado".

ceuneves@dn.pt