6.4.23

Trabalha no Hospital de Cascais e está a escrever um livro para “evitar que outros sofram com bullying” como ele sofreu. A trissomia 21 é impotente para travar a vida frenética de Luís.

António Pedro Pereira(texto) e Matilde Fieschi (fotografia), in Público

dinâmica da relação entre Luís Farrolas, de 30 anos, portador de trissomia 21, e a mãe, Fernanda, é assente numa cumplicidade exuberante. Quem tem o privilégio de assistir aos debates acesos entre ambos, usualmente provocados pelo filho, facilmente percebe que Luís tem energia e argumentos inesgotáveis. A adrenalina permite-lhe manter o emprego como administrativo no Hospital de Cascais, gerir três canais no YouTube e praticar boxe enquanto escreve um livro para evitar que outros sofram bullying, como ele sentiu na pele (“tenho um trunfo na manga”, diz, desafiante, para não revelar muito do teor).

O Luís é tão ávido de viver, construir, partilhar que a mãe, volta e meia, durante a conversa com o PÚBLICO, tem de lhe acalmar o ritmo, para que ele não se atrapalhe com as palavras. Estes momentos, para quem os aprecia de fora, são ternos, mas testam a paciência da progenitora a um ritmo galopante, um atrás do outro. Porque Luís não é de se ficar: tem sempre mais alguma coisa a acrescentar ao que a mãe contrapõe.

Um dragão que “protege” a família

Luís Filipe Basílio Farrolas nasceu a 20 de Novembro de 1992, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, e cresceu em Mem Martins, onde vive. Os pais estão divorciados, tem uma irmã, mais velha, um sobrinho, um cão, de raça jack-russell, que se chama Jack, e vive na casa da mãe, também com a avó. E demonstra ter uma personalidade protectora.

Mostra-o da forma mais singela, orgulhoso: arregaça a manga da camisa e exibe a tatuagem de um dragão. “Foi uma prenda da minha irmã e do meu sobrinho”, conta, com a mãe a ajudar a contextualizar – foi prenda do 30.º aniversário, celebrado no ano passado. “O dragão é um protector e protege a minha família. É uma homenagem à minha mãe e ao meu pai”, explica Luís.

E continua, como em quase tudo, porque a vontade de ir mais longe, mais além, está-lhe no sangue: “Quero fazer outra: uma árvore a criar raízes para o dragão se apoiar.” A simbologia é óbvia. Árvores e raízes, homenagem aos pais e à família. A família é o centro do mundo deste administrativo hospitalar. Resumindo, como repete um par de vezes durante a conversa, o Luís é um homem de “fé e esperança” e “o céu é o limite”.

As contrariedades na vida de Luís, e de quem o rodeia, apoia e orienta, começaram à nascença, com o diagnóstico de trissomia 21. Mas continuam vida fora, dos estigmas sociais que tem de enfrentar em conjunto com a família aos dramas quotidianos de tantas e tantas famílias.

“Estava na escola e fui vítima de bullying, roubaram-me”, dispara Luís, sobre um tema que mais à frente voltará a ser invocado. Depois de ter frequentado o Externato Rainha Santa Isabel até aos seis anos, fez a primária na escola pública de Algueirão e prosseguiu os estudos até ao 9.º ano na Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Ferreira de Castro, sede do agrupamento. Este percurso decorreu todo em Mem Martins.

Desde pequeno que Luís é muito activo, envolvendo-se em várias actividades desportivas e artísticas. Praticou surf, em Carcavelos, equitação, natação e, por causa de uma rótula que salta, está agora no boxe, porque esta modalidade não exige tanta rotação dos membros inferiores.

Quando chegou à Cercica – Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais, encontrou um professor de Matemática e de Ensino Especial que o introduziu na pintura. “Pinto o meu auto-retrato e, como é, mãe?... abstractos. Fiquei bastante contente de vender alguns”, sorri.

Na Cervica, tirou um curso de restauração e hotelaria, que terminou em 2012, embora sob protesto. O que queria, mesmo, era ser mecânico, um tema que, visivelmente, tem provocado conversas acaloradas com a mãe, que o tenta manter focado no emprego que tem, fará no dia 1 de Junho quatro anos, no Hospital de Cascais.

Entre sorrisos e algumas caretas perante a insaciável vontade de Luís em fazer mais, fazer diferente, a mãe, Fernanda, assente que o apoio ao filho não tem sido tão difícil quanto poderia ser, apesar dos enormes desafios, porque o Luís não tem nenhuma doença congénita. Entre os portadores de trissomia 21, são frequentes as complicações na saúde, sobretudo quando estão associadas doenças graves, como as do foro cardíaco.

Acabado o curso de três anos na Cervica, em 2012, Luís começou quase de imediato a trabalhar, aproveitando a formação como empregado de mesa e de balcão.

Intervém a mãe, mais bem preparada para datas e factos: “O Luís já teve dois empregos fixos.” Um deles foi numa chocolataria, no Mercado de Santa Clara: As Marias com Chocolate. “Amo chocolate”, atalha Luís. E confessa: “Eu comia o chocolate e deixava a embalagem vazia.”

Mais tarde, através da Associação Pais 21 – Down Portugal, e dos protocolos que esta organização mantém com empresas e instituições para empregar pessoas com trissomia 21, chegou a oportunidade no Hospital Dr. José Almeida, o hospital de Cascais.

E como tem sido o trabalho para o Luís? “Antes, tinha farda, mas com esta administração acabaram as fardas”, diz de rajada. O Hospital de Cascais tem sido gerido em regime de parceria público-privada (PPP), mas, entre o final do ano passado e o início deste, a exploração passou das mãos do Grupo Lusíadas Saúde para os espanhóis do Ribera Salud.

“Trabalhava numa sala com o Nuno e o Tiago, e fiquei só com o Tiago. Distribuía o correio. Houve a pandemia e deram-me uma sala”, relata Luís, que tem como principais funções separar o correio e distribuí-lo pelas salas dos serviços administrativos, além de muitas outras tarefas de escritório, como a plastificação de documentos. E, pelo meio, foi criando relações fortes, como fica demonstrado quando responde sobre a relação com os colegas de trabalho. “A Anabela e a Cristina, eu amo, porque considero minhas mães”, declara sobre as secretárias da administração.

O céu é o limite

Tal como foi referido acima, a vida quotidiana de Luís está longe de ficar confinada à rotina casa-trabalho-casa. Além das actividades desportivas e artísticas, há a faceta de comunicador nato, que o leva a gerir três canais de YouTube.


A propósito de um deles, sobre uma das fixações deste adepto do Sporting, que não gosta de acompanhar futebol porque “as pessoas discutem muito e andam à pancada”, surgem temas mais transcendentais.

Ou mais terrenos, como o evidente orgulho no trabalho de actor de teatro que fez na LX Factory, em Lisboa. “Fiz teatro e conheço quase toda a gente da novela A Única Mulher [transmitida pela TVI entre Março de 2015 e Janeiro de 2017], só me falta conhecer um ou dois actores”, diz, ainda com a esperança de que isso venha a acontecer.

A esperança está na base do mote de vida de Luís, que a apregoa, e à fé, tendo o céu como limite. “Deus é muito importante para mim”, vinca. Desta vez, é a mãe que aproveita para o provocar. “Acreditas no além e estás sempre a ver vídeos sobre fantasmas e espíritos”, diz-lhe. Tocou num ponto nevrálgico das crenças em que investe tanto de si. Fernanda, pedagogicamente, atalha a conversa, que Luís eternizaria: “A psicóloga já te disse que não podes acreditar em tudo.” Luís assente, contrariado, porque garante que os espíritos e fantasmas são reais, existem e está “comprovado”.

A psicóloga é Marta Silva, que começou a acompanhar o Luís no Diferenças – Centro de Desenvolvimento Infantil e que, já não colaborando com aquela associação, mantém a relação terapêutica com Luís. Fernanda explica que “o protocolo da Pais 21 prevê um acompanhamento psicológico no local de trabalho para resolver conflitos, porque nem sempre é fácil”.

Um exemplo das dificuldades que Luís coloca em quem o rodeia, pela sua persistência, é o impulso que o tema dos espíritos e dos fantasmas lhe dá. Aliás, um dos seus canais no YouTube é dedicado ao sobrenatural – a mãe aproveita para lhe dizer que passa demasiado tempo naquela plataforma a ver vídeos esotéricos. Mas o Luís não desarma: “Sou youtuber. Tenho uma câmara a mostrar o meu dia-a-dia, a minha vida. E tenho mais dois canais”, acrescenta. Fernanda não perdoa a oportunidade: “É a ver se enriqueces, esse é o objectivo.” Riem-se os dois, manifestando a tal cumplicidade.

Enriquecer, para Luís, tem outro significado, já agora. Basicamente, chega-se lá devolvendo aos outros o que se recebeu. E como o Luís tem recebido algo da vida, quer ajudar terceiros a evitarem passar por situações negativas. E voltamos ao bullying de que confessa ter sido vítima na escola, quando o intimidavam e roubavam.

“Estou a escrever o meu livro”, anuncia, a dado momento, pomposamente. Instigado a desenvolver o tema, mostra e esconde, com doses iguais de ingenuidade e provocação. “É sobre a minha vida. E para as pessoas não passarem pelas mesmas coisas que eu passei”, destapa. Fernanda compõe: “São as tuas memórias.” Riem-se ambos, mais uma vez.

O livro é um assunto sério, mas também tem, para Luís, um lado divertido como mote de conversa. Sobretudo quando é questionado sobre se já tem um título para a obra. “Tenho, mas não sei se o hei-de dizer”, começa por dizer, abrindo a porta a mais perguntas.

Provocado sobre se tinha receio de que lhe pudessem roubar a ideia, responde à letra: “O título é O meu Primeiro Livro.” E se alguém lê e decide usar esse título? Luís sorri, respira suavemente e dispara, com charme, a sua faceta provocadora, aquela que sobressai na forma como encara a vida: “Tenho uma carta na manga”, anuncia, e acrescenta sorridente: “Posso alterar o título, tenho outras ideias.”

Esta carta na manga é concreta: é sobre como vai chamar ao seu livro. Mas bem podia ser sobre muitas das outras facetas da sua vida, do trabalho às mil actividades desportivas e artísticas com que preenche o seu imenso mundo.