António Pedro Pereira(texto) e Matilde Fieschi (fotografia), in Público
dinâmica da relação entre Luís Farrolas, de 30 anos, portador de trissomia 21, e a mãe, Fernanda, é assente numa cumplicidade exuberante. Quem tem o privilégio de assistir aos debates acesos entre ambos, usualmente provocados pelo filho, facilmente percebe que Luís tem energia e argumentos inesgotáveis. A adrenalina permite-lhe manter o emprego como administrativo no Hospital de Cascais, gerir três canais no YouTube e praticar boxe enquanto escreve um livro para evitar que outros sofram bullying, como ele sentiu na pele (“tenho um trunfo na manga”, diz, desafiante, para não revelar muito do teor).O Luís é tão ávido de viver, construir, partilhar que a mãe, volta e meia, durante a conversa com o PÚBLICO, tem de lhe acalmar o ritmo, para que ele não se atrapalhe com as palavras. Estes momentos, para quem os aprecia de fora, são ternos, mas testam a paciência da progenitora a um ritmo galopante, um atrás do outro. Porque Luís não é de se ficar: tem sempre mais alguma coisa a acrescentar ao que a mãe contrapõe.
Um dragão que “protege” a família
Luís Filipe Basílio Farrolas nasceu a 20 de Novembro de 1992, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, e cresceu em Mem Martins, onde vive. Os pais estão divorciados, tem uma irmã, mais velha, um sobrinho, um cão, de raça jack-russell, que se chama Jack, e vive na casa da mãe, também com a avó. E demonstra ter uma personalidade protectora.
Mostra-o da forma mais singela, orgulhoso: arregaça a manga da camisa e exibe a tatuagem de um dragão. “Foi uma prenda da minha irmã e do meu sobrinho”, conta, com a mãe a ajudar a contextualizar – foi prenda do 30.º aniversário, celebrado no ano passado. “O dragão é um protector e protege a minha família. É uma homenagem à minha mãe e ao meu pai”, explica Luís.
E continua, como em quase tudo, porque a vontade de ir mais longe, mais além, está-lhe no sangue: “Quero fazer outra: uma árvore a criar raízes para o dragão se apoiar.” A simbologia é óbvia. Árvores e raízes, homenagem aos pais e à família. A família é o centro do mundo deste administrativo hospitalar. Resumindo, como repete um par de vezes durante a conversa, o Luís é um homem de “fé e esperança” e “o céu é o limite”.
As contrariedades na vida de Luís, e de quem o rodeia, apoia e orienta, começaram à nascença, com o diagnóstico de trissomia 21. Mas continuam vida fora, dos estigmas sociais que tem de enfrentar em conjunto com a família aos dramas quotidianos de tantas e tantas famílias.
“Estava na escola e fui vítima de bullying, roubaram-me”, dispara Luís, sobre um tema que mais à frente voltará a ser invocado. Depois de ter frequentado o Externato Rainha Santa Isabel até aos seis anos, fez a primária na escola pública de Algueirão e prosseguiu os estudos até ao 9.º ano na Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Ferreira de Castro, sede do agrupamento. Este percurso decorreu todo em Mem Martins.
Desde pequeno que Luís é muito activo, envolvendo-se em várias actividades desportivas e artísticas. Praticou surf, em Carcavelos, equitação, natação e, por causa de uma rótula que salta, está agora no boxe, porque esta modalidade não exige tanta rotação dos membros inferiores.
Quando chegou à Cercica – Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais, encontrou um professor de Matemática e de Ensino Especial que o introduziu na pintura. “Pinto o meu auto-retrato e, como é, mãe?... abstractos. Fiquei bastante contente de vender alguns”, sorri.
Na Cervica, tirou um curso de restauração e hotelaria, que terminou em 2012, embora sob protesto. O que queria, mesmo, era ser mecânico, um tema que, visivelmente, tem provocado conversas acaloradas com a mãe, que o tenta manter focado no emprego que tem, fará no dia 1 de Junho quatro anos, no Hospital de Cascais.
Entre sorrisos e algumas caretas perante a insaciável vontade de Luís em fazer mais, fazer diferente, a mãe, Fernanda, assente que o apoio ao filho não tem sido tão difícil quanto poderia ser, apesar dos enormes desafios, porque o Luís não tem nenhuma doença congénita. Entre os portadores de trissomia 21, são frequentes as complicações na saúde, sobretudo quando estão associadas doenças graves, como as do foro cardíaco.
Acabado o curso de três anos na Cervica, em 2012, Luís começou quase de imediato a trabalhar, aproveitando a formação como empregado de mesa e de balcão.
Intervém a mãe, mais bem preparada para datas e factos: “O Luís já teve dois empregos fixos.” Um deles foi numa chocolataria, no Mercado de Santa Clara: As Marias com Chocolate. “Amo chocolate”, atalha Luís. E confessa: “Eu comia o chocolate e deixava a embalagem vazia.”
Mais tarde, através da Associação Pais 21 – Down Portugal, e dos protocolos que esta organização mantém com empresas e instituições para empregar pessoas com trissomia 21, chegou a oportunidade no Hospital Dr. José Almeida, o hospital de Cascais.
E como tem sido o trabalho para o Luís? “Antes, tinha farda, mas com esta administração acabaram as fardas”, diz de rajada. O Hospital de Cascais tem sido gerido em regime de parceria público-privada (PPP), mas, entre o final do ano passado e o início deste, a exploração passou das mãos do Grupo Lusíadas Saúde para os espanhóis do Ribera Salud.
“Trabalhava numa sala com o Nuno e o Tiago, e fiquei só com o Tiago. Distribuía o correio. Houve a pandemia e deram-me uma sala”, relata Luís, que tem como principais funções separar o correio e distribuí-lo pelas salas dos serviços administrativos, além de muitas outras tarefas de escritório, como a plastificação de documentos. E, pelo meio, foi criando relações fortes, como fica demonstrado quando responde sobre a relação com os colegas de trabalho. “A Anabela e a Cristina, eu amo, porque considero minhas mães”, declara sobre as secretárias da administração.
O céu é o limite
Tal como foi referido acima, a vida quotidiana de Luís está longe de ficar confinada à rotina casa-trabalho-casa. Além das actividades desportivas e artísticas, há a faceta de comunicador nato, que o leva a gerir três canais de YouTube.
A propósito de um deles, sobre uma das fixações deste adepto do Sporting, que não gosta de acompanhar futebol porque “as pessoas discutem muito e andam à pancada”, surgem temas mais transcendentais.
Ou mais terrenos, como o evidente orgulho no trabalho de actor de teatro que fez na LX Factory, em Lisboa. “Fiz teatro e conheço quase toda a gente da novela A Única Mulher [transmitida pela TVI entre Março de 2015 e Janeiro de 2017], só me falta conhecer um ou dois actores”, diz, ainda com a esperança de que isso venha a acontecer.
A esperança está na base do mote de vida de Luís, que a apregoa, e à fé, tendo o céu como limite. “Deus é muito importante para mim”, vinca. Desta vez, é a mãe que aproveita para o provocar. “Acreditas no além e estás sempre a ver vídeos sobre fantasmas e espíritos”, diz-lhe. Tocou num ponto nevrálgico das crenças em que investe tanto de si. Fernanda, pedagogicamente, atalha a conversa, que Luís eternizaria: “A psicóloga já te disse que não podes acreditar em tudo.” Luís assente, contrariado, porque garante que os espíritos e fantasmas são reais, existem e está “comprovado”.
A psicóloga é Marta Silva, que começou a acompanhar o Luís no Diferenças – Centro de Desenvolvimento Infantil e que, já não colaborando com aquela associação, mantém a relação terapêutica com Luís. Fernanda explica que “o protocolo da Pais 21 prevê um acompanhamento psicológico no local de trabalho para resolver conflitos, porque nem sempre é fácil”.
Um exemplo das dificuldades que Luís coloca em quem o rodeia, pela sua persistência, é o impulso que o tema dos espíritos e dos fantasmas lhe dá. Aliás, um dos seus canais no YouTube é dedicado ao sobrenatural – a mãe aproveita para lhe dizer que passa demasiado tempo naquela plataforma a ver vídeos esotéricos. Mas o Luís não desarma: “Sou youtuber. Tenho uma câmara a mostrar o meu dia-a-dia, a minha vida. E tenho mais dois canais”, acrescenta. Fernanda não perdoa a oportunidade: “É a ver se enriqueces, esse é o objectivo.” Riem-se os dois, manifestando a tal cumplicidade.
Enriquecer, para Luís, tem outro significado, já agora. Basicamente, chega-se lá devolvendo aos outros o que se recebeu. E como o Luís tem recebido algo da vida, quer ajudar terceiros a evitarem passar por situações negativas. E voltamos ao bullying de que confessa ter sido vítima na escola, quando o intimidavam e roubavam.
“Estou a escrever o meu livro”, anuncia, a dado momento, pomposamente. Instigado a desenvolver o tema, mostra e esconde, com doses iguais de ingenuidade e provocação. “É sobre a minha vida. E para as pessoas não passarem pelas mesmas coisas que eu passei”, destapa. Fernanda compõe: “São as tuas memórias.” Riem-se ambos, mais uma vez.
O livro é um assunto sério, mas também tem, para Luís, um lado divertido como mote de conversa. Sobretudo quando é questionado sobre se já tem um título para a obra. “Tenho, mas não sei se o hei-de dizer”, começa por dizer, abrindo a porta a mais perguntas.
Provocado sobre se tinha receio de que lhe pudessem roubar a ideia, responde à letra: “O título é O meu Primeiro Livro.” E se alguém lê e decide usar esse título? Luís sorri, respira suavemente e dispara, com charme, a sua faceta provocadora, aquela que sobressai na forma como encara a vida: “Tenho uma carta na manga”, anuncia, e acrescenta sorridente: “Posso alterar o título, tenho outras ideias.”
Esta carta na manga é concreta: é sobre como vai chamar ao seu livro. Mas bem podia ser sobre muitas das outras facetas da sua vida, do trabalho às mil actividades desportivas e artísticas com que preenche o seu imenso mundo.