Luciano Alvarez (Texto) e Maria Abranches (Fotografia), in Público
No seio de uma miséria atroz em pleno século XXI e numa altura em que os bairros de barracas se voltam a mostrar em força, há quem dedique a vida a ajudar os mais pobres entre os pobres.
Celebrou-se há pouco mais de uma semana os 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), que muitos dizem ter acabado com as barracas em Portugal. Na verdade, nunca acabou totalmente com elas. Com a pandemia e com a actual crise financeira, os bairros de “casas” de zinco, madeira e plásticos voltaram a estar à vista dos portugueses em vários pontos do país e cada vez em maior número. Uma demolição de barracas no início deste mês na freguesia de Camarate, no concelho de Loures, trouxe mais uma vez esta realidade para a actualidade noticiosa.
Em Dezembro de 2021, o programa 1.º Direito, para acesso à habitação por pessoas carenciadas que vivem em condições consideradas indignas, revelava que já existiam mais de 38 mil famílias identificadas por 124 autarquias, segundo dados do Ministério da Habitação.
Segundo a Câmara Municipal de Loures (CML) revelou ao PÚBLICO, “estão identificadas no concelho aproximadamente 500 construções abarracadas”. Em 2022, a autarquia mandou demolir 21 e já este ano 20. O património municipal habitacional é actualmente composto por 2447 fogos e nos últimos três anos foram submetidos 1100 pedidos de apoio habitacional.
Nestas “construções abarracadas” vivem os mais pobres entre os pobres, famílias inteiras que, mesmo tendo emprego, não têm dinheiro para sequer arrendar um pequeno quarto. Mas há uma boa notícia: no meio desta terrível miséria, há quem dedique a sua vida a ajudar os que nada têm.
José Duarte, 57 anos, ficou conhecido quando, no início deste mês, a CML ordenou a demolição de três barracas no Bairro do Talude. No meio de gritos e choros de revolta, ele foi a voz calma que falou para diversos órgãos de comunicação social a pedir que se respeitasse as pessoas e que sejam encontradas soluções que as tirem das miseráveis “casas” de chapa e zinco que não param de crescer no concelho.
Dar todo o tipo de apoios aos que mais precisam tem sido a sua vida, e com tarefas muito difíceis. Em 1995 foi em missão para a Colômbia. Regressou em 2002, mas pouco tempo depois voltou. Ficou no país sul-americano, que viveu anos de intensa guerrilha, até 2016.
Ao longo de todos esses anos apoiou pequenos e pobres agricultores que eram obrigados pelos cartéis da droga a plantar as papoilas para a produção de cocaína. “Eu próprio as plantei, e raspei muita coca. O trabalho era esse, não havia outro remédio”, conta, mostrando um sorriso parecido ao de uma criança que recebeu um doce.
Outra das tarefas difíceis que teve na Colômbia foi dar apoio a reclusos nas prisões de alta segurança do país. “Era complicado. O consumo de droga era altíssimo, havia nuvens de fumo em todo o lado. Ainda hoje, quando alguém está a fumar droga, eu detecto o cheiro a grande distância”, conta.
A paróquia do povo
Há quase oito anos regressou a Portugal. Optou por não trabalhar em nenhuma paróquia. O trabalho na rua, junto das pessoas que menos têm, foi a opção de vida deste homem nascido na Lourinhã. “A minha paróquia é o povo. Eu não cabia noutra paróquia que não esta”, afirma.
O irmão José Duarte recebeu os jornalistas do PÚBLICO num rés-do-chão da Rua do Comércio na freguesia de Camarate. Um espaço amplo, com algumas paredes “forradas” de livros, e mesas e cadeiras, algumas destinadas a crianças espalhadas pela sala principal. É a sede da associação sem fins lucrativos “para a cidadania em desenvolvimento” Jovem Despertar. Um espaço “com personalidade jurídica, canónica e civil da iniciativa dos institutos dos Missionários Combonianos do Coração de Jesus e Irmãs Missionárias Combonianas, em colaboração com a Paróquia de São Tiago de Camarate.
Resumindo: uma associação que tem como objectivo principal dar todo o apoio possível aos mais pobres. E pobreza é o que não falta nesta freguesia e em muitas outras do concelho de Loures. Um sinal dessa miséria é dado pelas barracas que os visitantes que percorram as suas estradas podem avistar em vários locais.
“Uma vereadora da Câmara de Loures disse-me recentemente que existem cerca de 500 barracas no concelho. Não acredito. São mais de 2000. E com a pandemia e agora com a crise, não param de crescer. Constroem-se barracas quase todos os dias. As pessoas, mesmo as que trabalham, não têm outra solução para viver”, assegura.
Uma das tarefas da Acreditar, fundada há cerca de 12 anos, é receber todos os dias da semana jovens estudantes que terminam as aulas por volta das 16h, mas cujos pais só chegam a casa por volta das 19h, ou mais tarde. Ali estudam, com o apoio de professores, brincam e, se necessário, recebem ajuda clínica com o apoio de médicos. “Evita-se que as crianças fiquem ao abandono na rua várias horas. Há aqui mães que saem de casa às cinco da manhã, muitas delas para o trabalho nas limpezas, e só voltam às 20h, depois de terem trabalhado em três casas num só dia. E mesmo assim não têm dinheiro para arrendar um quarto ou uma casa”, diz o missionário.
Lutar para sobreviver
José Duarte garante que hoje não se consegue arrendar um pequeno apartamento na freguesia de Camarate, e “muitas vezes em péssimas condições de habitabilidade, por menos de 500, 700 euros com recibo de renda”. “Sem recibo fica entre os 400 e os 500 euros, mas aqui é quase tudo sem recibo. É tudo ilegal. E os quartinhos ficam mais ou menos aos mesmos preços. E depois gera-se toda uma cadeia de ilegalidades feita por pessoas que se aproveitam de quem luta pela sobrevivência. Sim, muitas das pessoas que aqui vivem lutam para sobreviver”, acrescenta com um semblante muito triste. “Sim, fico muito triste quando falo disto porque não vejo solução para estes problemas.”
Lutar para sobreviver
José Duarte garante que hoje não se consegue arrendar um pequeno apartamento na freguesia de Camarate, e “muitas vezes em péssimas condições de habitabilidade, por menos de 500, 700 euros com recibo de renda”. “Sem recibo fica entre os 400 e os 500 euros, mas aqui é quase tudo sem recibo. É tudo ilegal. E os quartinhos ficam mais ou menos aos mesmos preços. E depois gera-se toda uma cadeia de ilegalidades feita por pessoas que se aproveitam de quem luta pela sobrevivência. Sim, muitas das pessoas que aqui vivem lutam para sobreviver”, acrescenta com um semblante muito triste. “Sim, fico muito triste quando falo disto porque não vejo solução para estes problemas.”
José Duarte diz que, desde que chegou a Portugal, tem dedicado parte do seu tempo a perceber como as barracas chegaram ao concelho de Loures. Conta que tudo terá começado nos anos 1960, “quando os primeiros ‘imigrantes’ eram os portugueses”: “Gente que vinha de todo o país trabalhar para Lisboa e que, sem poder arrendar uma casa, construía aqui uma barraca, até porque muitos vinham trabalhar para as fábricas de loiça de Sacavém e para as obras.”
Essas barracas são hoje muitas das casas térreas e até prédios de três e quatro andares que ocupam uma boa parte da freguesia. Ainda hoje são quase todos ilegais. “As pessoas vivem lá há anos, mas eles nunca foram registados. Só nas freguesias de Camarate e da Apelação há 28 bairros destas casas e prédios ilegais. E há muita gente que enriqueceu à custa deles”, salienta.
Já nos anos 1970 e 80 “começaram a chegar em massa os imigrantes estrangeiros”: “Vinham essencialmente de São Tomé, Guiné e Cabo Verde. Vinham trabalhar para as obras e muitos deles construíram a Ponte Vasco da Gama e a Expo’98."
Segundo conta José Duarte, a seguir “começaram a chegar os cidadãos do Brasil”, e “o número de barracas sempre a aumentar, embora tivessem sido construídos alguns bairros sociais”. Ultimamente, diz que chegam ao concelho cidadãos do Bangladesh, da Somália e muitos da Índia: “Continuam também a vir pessoas dos países de língua portuguesa, especialmente da Guiné, que vêm fazer tratamentos médicos graças a protocolos entre os países que têm o apoio da embaixada por dois, três meses, e depois ficam ao abandono. Não têm emprego e constroem uma barraca.”
Mas como é que gente que nada tem consegue arranjar dinheiro para comprar meia dúzia de chapas de zinco e alguma madeira para levantar uma barraca? José Duarte explica: “Estas pessoas são muito solidárias. Ajudam-se umas às outras, uma dá uma coisinha, outra também dá uma pequena ajuda. Depois também há muito lixo espalhado pelos campos que dá para construir uma barraca.”
“A cor da pele ainda conta”
Um dos factos que espantaram o missionário quando regressou a Portugal foi o racismo que diz existir no país. “Há muito racismo, pensei que isso já não existia no nosso país, mas há. A cor da pele ainda conta. E há também muita exploração laboral e muita violência.”
A miséria em que as pessoas vivem, a falta de trabalho, os baixos salários, a falta de casa “e muitas vezes a fome” levam José Duarte a repetir o que já tinha dito no Bairro do Talude no início do mês: “Aqui vive-se uma guerra. O que é uma guerra? É uma situação em que uma pessoa está muito limitada e está sob enorme pressão. É o que estas pessoas estão a viver.”
Uma situação, acrescenta, “em que as pessoas estão a viver no limite”. “Nota-se nas crianças, que estão cada mais violentas, mais tensas. Não sou só eu que o digo, são também os médicos e os professores. Sente-se também nas pessoas que estão nos bairros sociais, que se transformaram em guetos porque foram mal pensados. Há tensão entre as diversas etnias. Isto é um barril de pólvora que pode rebentar a qualquer momento”, alerta.
José Duarte acredita que não vão ser os políticos que vão acabar “com esta guerra”, porque diz que “eles vivem numa democracia, mas desconhecem ou ignoram a democracia em que vivem estas pessoas”: “Têm de ser as pessoas a resolver. A sociedade civil tem de se unir e lutar para resolver este problema. Tem de se ouvir as pessoas que estão no terreno.”
“Não basta dar uma casa”
Quanto à problemática das barracas e das casas degradadas, o missionário diz que “não basta dar uma casa num bairro social: “Tem de se formar as pessoas, até ao nível da gestão económica, e de as acompanhar. Tem de se dar casas de acordo com a sua vivência. Mas, muitas vezes, dá-se uma casa com uma renda simbólica, mas esquece-se que também tem de se pagar a água, o gás e a electricidade, que, quando moravam numa barraca, não pagavam, e agora não conseguem pagar à casa. Conheço pessoas que eram mais felizes quando viviam numa barraca.”
Diz ainda que tem de se conhecer a realidade de cada pessoa a quem se dá uma casa. E cita vários maus exemplos, como uma mãe que tinha um filho paraplégico e “foi colocada num nono andar de um prédio que tinha o elevador quase sempre avariado. “O seu filho acabou por morrer.” Ou o do homem que vivia no sétimo andar do mesmo prédio “e que tinha de ter assistência permanente de oxigénio”. “Também morreu no prédio.” Ou, por último, o da mulher “que vivia do material que apanhava para vender para reciclagem, que também teve uma casa nova, mas não lhe deram um espaço para guardar o material que ia recolhendo”.
Fala com tristeza por não ter ele próprio uma solução para acabar com “esta guerra”, mas diz que, “como homem de fé, um dia será possível” resolver este problema. “Tem de ser, afinal somos todos irmãos.”
José Duarte despede-se dos jornalistas do PÚBLICO convidando-os a visitarem a associação na manhã de sábado: “É o dia em que distribuímos cabazes alimentares pelas famílias mais carenciadas. Um dia em que pessoas de vários credos fazem orações em conjunto. É um dia de alegria.”
Celebrou-se há pouco mais de uma semana os 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), que muitos dizem ter acabado com as barracas em Portugal. Na verdade, nunca acabou totalmente com elas. Com a pandemia e com a actual crise financeira, os bairros de “casas” de zinco, madeira e plásticos voltaram a estar à vista dos portugueses em vários pontos do país e cada vez em maior número. Uma demolição de barracas no início deste mês na freguesia de Camarate, no concelho de Loures, trouxe mais uma vez esta realidade para a actualidade noticiosa.
Em Dezembro de 2021, o programa 1.º Direito, para acesso à habitação por pessoas carenciadas que vivem em condições consideradas indignas, revelava que já existiam mais de 38 mil famílias identificadas por 124 autarquias, segundo dados do Ministério da Habitação.
Segundo a Câmara Municipal de Loures (CML) revelou ao PÚBLICO, “estão identificadas no concelho aproximadamente 500 construções abarracadas”. Em 2022, a autarquia mandou demolir 21 e já este ano 20. O património municipal habitacional é actualmente composto por 2447 fogos e nos últimos três anos foram submetidos 1100 pedidos de apoio habitacional.
Nestas “construções abarracadas” vivem os mais pobres entre os pobres, famílias inteiras que, mesmo tendo emprego, não têm dinheiro para sequer arrendar um pequeno quarto. Mas há uma boa notícia: no meio desta terrível miséria, há quem dedique a sua vida a ajudar os que nada têm.
José Duarte, 57 anos, ficou conhecido quando, no início deste mês, a CML ordenou a demolição de três barracas no Bairro do Talude. No meio de gritos e choros de revolta, ele foi a voz calma que falou para diversos órgãos de comunicação social a pedir que se respeitasse as pessoas e que sejam encontradas soluções que as tirem das miseráveis “casas” de chapa e zinco que não param de crescer no concelho.
Dar todo o tipo de apoios aos que mais precisam tem sido a sua vida, e com tarefas muito difíceis. Em 1995 foi em missão para a Colômbia. Regressou em 2002, mas pouco tempo depois voltou. Ficou no país sul-americano, que viveu anos de intensa guerrilha, até 2016.
Ao longo de todos esses anos apoiou pequenos e pobres agricultores que eram obrigados pelos cartéis da droga a plantar as papoilas para a produção de cocaína. “Eu próprio as plantei, e raspei muita coca. O trabalho era esse, não havia outro remédio”, conta, mostrando um sorriso parecido ao de uma criança que recebeu um doce.
Outra das tarefas difíceis que teve na Colômbia foi dar apoio a reclusos nas prisões de alta segurança do país. “Era complicado. O consumo de droga era altíssimo, havia nuvens de fumo em todo o lado. Ainda hoje, quando alguém está a fumar droga, eu detecto o cheiro a grande distância”, conta.
A paróquia do povo
Há quase oito anos regressou a Portugal. Optou por não trabalhar em nenhuma paróquia. O trabalho na rua, junto das pessoas que menos têm, foi a opção de vida deste homem nascido na Lourinhã. “A minha paróquia é o povo. Eu não cabia noutra paróquia que não esta”, afirma.
O irmão José Duarte recebeu os jornalistas do PÚBLICO num rés-do-chão da Rua do Comércio na freguesia de Camarate. Um espaço amplo, com algumas paredes “forradas” de livros, e mesas e cadeiras, algumas destinadas a crianças espalhadas pela sala principal. É a sede da associação sem fins lucrativos “para a cidadania em desenvolvimento” Jovem Despertar. Um espaço “com personalidade jurídica, canónica e civil da iniciativa dos institutos dos Missionários Combonianos do Coração de Jesus e Irmãs Missionárias Combonianas, em colaboração com a Paróquia de São Tiago de Camarate.
Resumindo: uma associação que tem como objectivo principal dar todo o apoio possível aos mais pobres. E pobreza é o que não falta nesta freguesia e em muitas outras do concelho de Loures. Um sinal dessa miséria é dado pelas barracas que os visitantes que percorram as suas estradas podem avistar em vários locais.
“Uma vereadora da Câmara de Loures disse-me recentemente que existem cerca de 500 barracas no concelho. Não acredito. São mais de 2000. E com a pandemia e agora com a crise, não param de crescer. Constroem-se barracas quase todos os dias. As pessoas, mesmo as que trabalham, não têm outra solução para viver”, assegura.
Uma das tarefas da Acreditar, fundada há cerca de 12 anos, é receber todos os dias da semana jovens estudantes que terminam as aulas por volta das 16h, mas cujos pais só chegam a casa por volta das 19h, ou mais tarde. Ali estudam, com o apoio de professores, brincam e, se necessário, recebem ajuda clínica com o apoio de médicos. “Evita-se que as crianças fiquem ao abandono na rua várias horas. Há aqui mães que saem de casa às cinco da manhã, muitas delas para o trabalho nas limpezas, e só voltam às 20h, depois de terem trabalhado em três casas num só dia. E mesmo assim não têm dinheiro para arrendar um quarto ou uma casa”, diz o missionário.
Lutar para sobreviver
José Duarte garante que hoje não se consegue arrendar um pequeno apartamento na freguesia de Camarate, e “muitas vezes em péssimas condições de habitabilidade, por menos de 500, 700 euros com recibo de renda”. “Sem recibo fica entre os 400 e os 500 euros, mas aqui é quase tudo sem recibo. É tudo ilegal. E os quartinhos ficam mais ou menos aos mesmos preços. E depois gera-se toda uma cadeia de ilegalidades feita por pessoas que se aproveitam de quem luta pela sobrevivência. Sim, muitas das pessoas que aqui vivem lutam para sobreviver”, acrescenta com um semblante muito triste. “Sim, fico muito triste quando falo disto porque não vejo solução para estes problemas.”
Lutar para sobreviver
José Duarte garante que hoje não se consegue arrendar um pequeno apartamento na freguesia de Camarate, e “muitas vezes em péssimas condições de habitabilidade, por menos de 500, 700 euros com recibo de renda”. “Sem recibo fica entre os 400 e os 500 euros, mas aqui é quase tudo sem recibo. É tudo ilegal. E os quartinhos ficam mais ou menos aos mesmos preços. E depois gera-se toda uma cadeia de ilegalidades feita por pessoas que se aproveitam de quem luta pela sobrevivência. Sim, muitas das pessoas que aqui vivem lutam para sobreviver”, acrescenta com um semblante muito triste. “Sim, fico muito triste quando falo disto porque não vejo solução para estes problemas.”
José Duarte diz que, desde que chegou a Portugal, tem dedicado parte do seu tempo a perceber como as barracas chegaram ao concelho de Loures. Conta que tudo terá começado nos anos 1960, “quando os primeiros ‘imigrantes’ eram os portugueses”: “Gente que vinha de todo o país trabalhar para Lisboa e que, sem poder arrendar uma casa, construía aqui uma barraca, até porque muitos vinham trabalhar para as fábricas de loiça de Sacavém e para as obras.”
Essas barracas são hoje muitas das casas térreas e até prédios de três e quatro andares que ocupam uma boa parte da freguesia. Ainda hoje são quase todos ilegais. “As pessoas vivem lá há anos, mas eles nunca foram registados. Só nas freguesias de Camarate e da Apelação há 28 bairros destas casas e prédios ilegais. E há muita gente que enriqueceu à custa deles”, salienta.
Já nos anos 1970 e 80 “começaram a chegar em massa os imigrantes estrangeiros”: “Vinham essencialmente de São Tomé, Guiné e Cabo Verde. Vinham trabalhar para as obras e muitos deles construíram a Ponte Vasco da Gama e a Expo’98."
Segundo conta José Duarte, a seguir “começaram a chegar os cidadãos do Brasil”, e “o número de barracas sempre a aumentar, embora tivessem sido construídos alguns bairros sociais”. Ultimamente, diz que chegam ao concelho cidadãos do Bangladesh, da Somália e muitos da Índia: “Continuam também a vir pessoas dos países de língua portuguesa, especialmente da Guiné, que vêm fazer tratamentos médicos graças a protocolos entre os países que têm o apoio da embaixada por dois, três meses, e depois ficam ao abandono. Não têm emprego e constroem uma barraca.”
Mas como é que gente que nada tem consegue arranjar dinheiro para comprar meia dúzia de chapas de zinco e alguma madeira para levantar uma barraca? José Duarte explica: “Estas pessoas são muito solidárias. Ajudam-se umas às outras, uma dá uma coisinha, outra também dá uma pequena ajuda. Depois também há muito lixo espalhado pelos campos que dá para construir uma barraca.”
“A cor da pele ainda conta”
Um dos factos que espantaram o missionário quando regressou a Portugal foi o racismo que diz existir no país. “Há muito racismo, pensei que isso já não existia no nosso país, mas há. A cor da pele ainda conta. E há também muita exploração laboral e muita violência.”
A miséria em que as pessoas vivem, a falta de trabalho, os baixos salários, a falta de casa “e muitas vezes a fome” levam José Duarte a repetir o que já tinha dito no Bairro do Talude no início do mês: “Aqui vive-se uma guerra. O que é uma guerra? É uma situação em que uma pessoa está muito limitada e está sob enorme pressão. É o que estas pessoas estão a viver.”
Uma situação, acrescenta, “em que as pessoas estão a viver no limite”. “Nota-se nas crianças, que estão cada mais violentas, mais tensas. Não sou só eu que o digo, são também os médicos e os professores. Sente-se também nas pessoas que estão nos bairros sociais, que se transformaram em guetos porque foram mal pensados. Há tensão entre as diversas etnias. Isto é um barril de pólvora que pode rebentar a qualquer momento”, alerta.
José Duarte acredita que não vão ser os políticos que vão acabar “com esta guerra”, porque diz que “eles vivem numa democracia, mas desconhecem ou ignoram a democracia em que vivem estas pessoas”: “Têm de ser as pessoas a resolver. A sociedade civil tem de se unir e lutar para resolver este problema. Tem de se ouvir as pessoas que estão no terreno.”
“Não basta dar uma casa”
Quanto à problemática das barracas e das casas degradadas, o missionário diz que “não basta dar uma casa num bairro social: “Tem de se formar as pessoas, até ao nível da gestão económica, e de as acompanhar. Tem de se dar casas de acordo com a sua vivência. Mas, muitas vezes, dá-se uma casa com uma renda simbólica, mas esquece-se que também tem de se pagar a água, o gás e a electricidade, que, quando moravam numa barraca, não pagavam, e agora não conseguem pagar à casa. Conheço pessoas que eram mais felizes quando viviam numa barraca.”
Diz ainda que tem de se conhecer a realidade de cada pessoa a quem se dá uma casa. E cita vários maus exemplos, como uma mãe que tinha um filho paraplégico e “foi colocada num nono andar de um prédio que tinha o elevador quase sempre avariado. “O seu filho acabou por morrer.” Ou o do homem que vivia no sétimo andar do mesmo prédio “e que tinha de ter assistência permanente de oxigénio”. “Também morreu no prédio.” Ou, por último, o da mulher “que vivia do material que apanhava para vender para reciclagem, que também teve uma casa nova, mas não lhe deram um espaço para guardar o material que ia recolhendo”.
Fala com tristeza por não ter ele próprio uma solução para acabar com “esta guerra”, mas diz que, “como homem de fé, um dia será possível” resolver este problema. “Tem de ser, afinal somos todos irmãos.”
José Duarte despede-se dos jornalistas do PÚBLICO convidando-os a visitarem a associação na manhã de sábado: “É o dia em que distribuímos cabazes alimentares pelas famílias mais carenciadas. Um dia em que pessoas de vários credos fazem orações em conjunto. É um dia de alegria.”