21.2.10

Abalado pela crise, o FMI mudou de discurso

Por Sérgio Aníbal, in Jornal Público

Ideias defendidas há muito, como o controlo da inflação, estão a ser contestadas pela própria instituição


Adivinhem quem diz isto: um pouco mais de inflação até pode ser positivo; os fluxos de capital nos países em desenvolvimento têm de ser controlados; reduzir os défices públicos pode não ser, num cenário de crise, a melhor opção. À primeira vista, seriam frases de um economista afastado da corrente dominante da ciência económica das últimas décadas, mas não.

As afirmações foram feitas por responsáveis do Fundo Monetário Internacional (FMI), a instituição símbolo da política económica denominada por "Consenso de Washington" e que defende políticas monetárias e orçamentais restritivas e liberalização dos fluxos de capitais.

A crise, pelos vistos, forçou o Fundo a reequacionar muitas das suas ideias. O primeiro a admiti-lo é o actual economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard (o economista francês que, para Portugal, aconselha há vários anos um corte nominal dos salários de 10 por cento, para que a economia recupere a competitividade e evite o desemprego). No final da semana passada, publicou, em conjunto com mais dois economistas do Fundo, um trabalho em que é defendido que, afinal, os governos e os bancos centrais que, durante as duas décadas anteriores à crise, pensavam que tinham conseguido encontrar o modelo ideal para garantir um crescimento sustentado da economia, estavam enganados. O período de inflação baixa e crescimento elevado - que ficou conhecido como a Grande Moderação - terminou em 2008 e obriga agora a repensar tudo. Olivier Blanchard escreve no documento que "a Grande Moderação levou os economistas e os responsáveis pela política económica a acreditar que se sabia como conduzir a política macroeconómica, mas a crise força-nos claramente a questionar essa avaliação".

Entre as propostas apresentadas está a ideia de que os bancos centrais devem ter um objectivo de inflação de quatro por cento, em vez dos dois por cento que são, por exemplo, usados pelo Banco Central Europeu. Isso daria uma maior agilidade à política monetária e permitiria, entre outras coisas, reduzir os problemas de endividamento, agora tão acentuados. Por outro lado, Blanchard pede aos bancos centrais uma acção mais forte contra as bolhas nos mercados.

O documento causou algum espanto nos meios académicos e da política monetária, especialmente entre os economistas que há mais tempo vêm defendendo este tipo de ideias. "Não me surpreende que o Olivier [Blanchard] possa pensar isto. Fico, no entanto, surpreendido que o FMI o deixe dizer isto sob os seus auspícios. De qualquer forma, concordo inteiramente", afirmou Paul Krugman, no seu blogue, onde salienta que uma política monetária em que uma maior inflação é permitida pode ser especialmente importante para a zona euro.

Mas não ficaram por aqui os recuos do FMI em relação ao passado. Um documento publicado esta semana pela instituição defende que as economias emergentes devem usar a política fiscal e a regulação para impedir a entrada excessiva de fluxos de capital, que depois, em alturas de instabilidade, criam crises financeiras graves com a sua saída apressada.

O próprio director-geral do Fundo, Dominique Strauss-Kahn, tem feito declarações que causam alguma surpresa. Perante os sinais dados pelos governos de retirada dos planos de ajuda à economia, este responsável defendeu a necessidade de continuar a apoiar o emprego. "Não só não devemos pôr fim aos planos de apoio a actividades que já foram instaladas, os famosos estímulos, como o nosso conselho é de que todos esses estímulos devem ser dirigidos para o emprego, para políticas de emprego", disse, numa entrevista publicada no início deste mês.

Claro que entre estas tomadas de posição e a aplicação prática destas ideia pode haver uma certa distância. Ainda recentemente, quando concedeu pacotes de ajuda financeira a países como a Ucrânia ou a Hungria - dois países com sérios problemas por causa da crise financeira -, o Fundo fez um conjunto de exigências muito semelhantes às que, no passado, tinha feito na Ásia ou na Argentina, sendo alvo de muitas críticas por causa disso. Agora, que novos desafios se aproximam - incluindo a possibilidade de um apoio a países da zona euro -, é importante perceber até que ponto é que o FMI mudou.