Patrícia Sousa, in Correio do Minho
Todos os dias de manhã, responsáveis da delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa recolhem bens alimentares em superfícies comerciais da cidade para todos os dias conseguirem dar uma refeição, às vezes a única, a muitas pessoas com carências.
“Esta é uma obra que só é possível com o pessoal que temos”, elogiou o presidente da delegação de Braga da Cruz Vermelha, Armando Osório, agradecendo às instituições e empresas que tornam possível este trabalho com a dádiva de produtos, até porque os pedidos de ajuda aumentam.
Os bens alimentares oferecidos permitem ajudar nas refeições que aquela instituição dá aos 47 utentes do Centro de Acolhimento Temporário Dr. Francisco Alvim, às 25 pessoas que contam com o apoio da equipa de intervenção social directa e o apoio que é dado a cerca de 60 pessoas através da equipa de rua.
“As famílias estão cada vez mais desestruturadas e os pedidos de ajuda aumentam de dia para dia”, lamentou o presidente. Vale a prontidão e ajuda dos funcionários e voluntários. “Os técnicos preocupam-se em arranjar mais meios. Estão a aumentar o trabalho, trabalho que sabem que não vai ser pago, porque a Cruz Vermelha não tem dinheiro para pagar horas extraordinárias. Mas também ninguém pede isso, é tudo feito voluntariamente”, salientou aquele responsável.
Neste momento, a Cruz Vermelha tem a ajuda diária do Pingo Doce, o Eleclerc apoia às terças, quintas e sextas-feiras, o Mercado Abastecedor da Região de Braga à quinta-feira, depois o Continente colabora aos sábados e o Arminho quando tem bens disponíveis.
“No final do ano, as despesas com as refeições são enormes e com este tipo de ajuda conseguimos apoiar cada vez mais pessoas com qualidade e agradecemos desde já às instituições em Braga que nos têm apoiado”, frisou o presidente. E atirou: “é muito importante este tipo de apoio, porque para além de permitir chegar a mais gente com mais qualidade, precisamos de responder ao aumento de pedidos de alimentação”.
“Alimentação funciona como um facilitador da comunicação”
Nuno Rodrigues, responsável pela equipa social de intervenção social directa, que existe desde 2000, ajuda 25 pessoas.
“Esta equipa trabalha com a população sem abrigo, estamos na rua e fazemos o apoio social também a pessoas com alguma vulnerabilidade social. Uma das formas de trabalhar é prevenir que isso aconteça porque as situações são cada vez mais e as instituições e equipamentos acabam por estar cheios”, referiu Nuno Rodrigues.
No Centro de Acolhimento Temporário Dr. Francisco Alvim, essas pessoas acabam por ter a possibilidade de fazer a alimentação, tratar da roupa e da higiene pessoal. “É um serviço para o qual não temos nenhum tipo de apoio financeiro”, lamentou aquele responsável.
Esta foi a solução e a alternativa encontradas para estas pessoas “satisfazerem as suas necessidades básicas”. Nuno Rodrigues defende que “a alimentação funciona muitas vezes como um facilitador da comunicação e um chamariz, porque permite estar diariamente com as pessoas e desenvolver um trabalho necessário a nível de saúde e social”.
Nesta equipa tem-se verificado “um aumento exponencial de pedidos para alimentação”, informou ainda o técnico, lembrando que a equipa começou por apoiar 20 pessoas e hoje já dá assistência a 25. “Não negamos um prato de comida a ninguém, mas o centro de acolhimento está cheio e tem uma lista de espera enorme”.
Aproximar de quem precisa
A par do trabalho da equipa de intervenção social directa, a delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa tem ainda a equipa de rua ‘Aproximar’, um projecto que funciona desde Outubro de 2003 e surgiu, inicialmente, para apoiar a população toxicodependente. Hoje, com a crise, o apoio já chega a famílias mais carenciadas.
Mafalda Lopes é a responsável pela equipa de rua, projecto que é financiado pelo Instituto da Droga e Toxicodependência. “Este projecto apoia a população toxicodependente do distrito através de uma unidade móvel e a intervenção é ao nível da redução de riscos, apoio sanitário e psicossocial”, explicou aquela técnica, adiantando que o posto móvel também permite a distribuição de refeições, bebidas quentes e vestuário.
Neste momento, por falta de pessoal, a equipa está apenas a fazer uma ronda à noite, das 17.15 às 19 horas. “No período da manhã estamos na central de camionagem das 10.30 às 12.30 horas. Todos os dias, cerca de 70 pessoas se dirigem à carrinha para tomar a metadona, muitas delas estão com terapêutica combinada. Depois fazemos todo o outro serviço de acompanhamento social e psicológico, encaminhamento, troca de seringas, rastreio rápido do HIV, damos as refeições e acompanhamos para o centro a nível do alojamento”, explicou a técnica, referindo que se tenta “preparar e estabilizar o utente para um possível tratamento e para que ele próprio tenha motivação”.
O projecto foi criado para dar resposta à população toxicodependente e até alcoólica. Mas hoje já não é bem assim. “Devido à situação que vivemos, começamos a ter muitas pessoas que o que têm é realmente uma necessidade económica. Trata-se de uma questão humanitária e não podemos virar as costas. Temos que chegar a todos que precisam e para muitos é a única refeição do dia”, adiantou Mafalda Lopes.
“Anjos da guarda” sempre alerta
A equipa de rua da delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa conta sempre com técnicos e voluntários. A tarefa, admitem, não é fácil, mas é reconfortante. Por tudo que fazem são os verdadeiros “anjos da guarda” sempre alerta.
Há nove anos a trabalhar na Cruz Vermelha, Nuno Gomes é técnico de animação social. “Há situações complicadas de gerir, mas em geral consegue-se lidar bem com todas elas. As pessoas acabam por reconhecer e agradecer e quando há complicações somos uma espécie de ponto de referência”, confidenciou o técnico, referindo que as pessoas “por vezes explodem porque as coisas não correm bem, mas acabam por vir pedir desculpa e percebem que não agiram correctamente”.
Para o jovem técnico, “este é um trabalho gratificante e acaba por puxar um pouco à terra, dando-se valor a coisas, que de outra forma não se dá”.
Tamb ém Joana Pinto é enfermeira na equipa de rua e animadora social. “Não é fácil lidar com as pessoas, que já são discriminadas”, admitiu a jovem. Mas estas pessoas, acredita Joana Pinto, “só precisam de um ombro amigo”.
Durante a ‘visita’ diária os técnicos tentam incentivar as pessoas a terem um novo patamar na vida. “Somos os amigos deles e a verdadeira família. Estas pessoas têm muito respeito por nós e há uma relação de empatia, por isso, tento explorar mais a vertente pessoal, além dos cuidados de saúde e psicológicos”. Joana confessou que era incapaz de “trocar por nada” este trabalho. “Eles só precisam de uma oportunidade e aqui sentem-se acarinhados e encontram alguém que se preocupa e que os incentiva. Eles próprios consideram-se lixo e isso não é verdade”, rematou a jovem.
Vidas no limite
Para muitos é a única oportunidade de comer uma sopa quente. Para quase todos é a “salvação”. Apesar da noite já estar a cair, junto ao Estádio 1.º Maio, a equipa de rua ‘Aproximar’ da delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa surge como “a luz ao fundo do túnel”. É assim de segunda a sexta-feira. Ali têm comida, mas também atenção e afectos. Esta é a “única família” e o único “ombro amigo” que têm.
Miguel (nome fictício, como todos os outros) é alentejano, mas apaixonou-se por uma rapariga de Braga e acabou por ficar. Juntos há quatro anos “a vida não tem sido nada fácil”. Para quem “tinha tudo” a vida “acabou por pregar uma partida”. Miguel trabalhava “numa grande empresa de camionagem” e fez durante anos voluntariado à noite. “Nunca pensei um dia estar deste lado. O meu maior sonho é voltar para o outro lado. Não sabem como gosto e preciso de ajudar”, desabafou.
A viver numa residencial, Miguel espera ter emprego daqui a dois meses, porque está a sobreviver com a ajuda da Cruz Vermelha, da Cáritas e do rendimento da companheira.
Já a saborear a sopa quente, o ‘Correio do Minho’, que acompanhou a equipa de rua numa destas noites, falou com Fátima. Hoje com 43 anos, Fátima ficou viúva há 20 anos e os pais também faleceram ainda era nova. “Não tenho família. O meu ex-marido maltratava-me e acabei por sair de casa. Depois conheci outro homem que me levou para os maus caminhos e perdi-me”, desabafou com a tristeza rasgada no olhar.
A viver na rua até há um mês, Fátima está hoje a morar com António, que a acolheu em casa. “Estava a dormir ali nas escadas do Parque de Exposições de Braga, mas queimaram-me tudo. Nunca tive sorte na minha vida, sempre que alguma coisa corre bem, logo vem algo que corre mal”, desabafou. Sem abrigo, Fátima ainda é toxicodependente, mas começou estes dias com a metadona. “Neste momento recebo uma pensão de 140 euros. Venho aqui comer a sopa e como, às vezes, umas sandes que o velhote me paga”, atirou. Ao seu lado estava António, que tem 77 anos. “Queimaram-lhe tudo, não se faz. Tenho pena dela e, por isso, dei-lhe abrigo lá em casa, mas já fiz o pedido na Cruz Vermelha para arranjarem um tecto para ela”.
Também José, de 33 anos, e Rosa, de 40 anos, estão a passar “por uma situação muito complicada”. “Vivíamos num apartamento, mas o emprego acabou e como não tínhamos possibilidade de pagar fomos expulsos. A solução encontrada foi uma casa abandonada e valeu-nos a boa vontade da vizinha que nos dava de comer porque tinha pena de nós e que pediu ajuda à Cruz Vermelha”. Hoje o casal, que sofre de problemas mentais, vive numa casa com a ajuda da Segurança Social. “Vimos cá todos os dias comer a sopa e buscar comida para depois comer em casa”, contaram. Emprego não conseguem arranjar e, entretanto, estão os dois inscritos nas Novas Oportunidades. “Já estamos bem melhores. Viver na rua é uma desgraça, uma experiência horrível”, confessaram.
Também desempregada, Conceição tem 44 anos. Já foi toxicodependente e tem a família no estrangeiro. “Meti agora os papéis para o rendimento mínimo e há dois anos que estou a receber ajuda na Cruz Vermelha e na Cáritas na alimentação, higiene e roupa. “É uma ajuda que estou a ter”, disse Conceição, que é divorciada e não tem filhos. “Vou jantar à Cáritas e venho aqui buscar fruta e alimentos para ter em casa para comer”, referiu a desempregada.
“Dar sem estar à espera de nada”
Com os técnicos seguem sempre voluntários na carrinha do projecto ‘Aproximar’.
António (nome fictício) é gestor e desde Agosto do ano passado decidiu ser voluntário. “Estive ligado ao associativismo desde sempre e senti necessidade de ajudar mais. Acabei por optar por este projecto que trabalha, sobretudo, com sem abrigo. É a vontade de dar sem estar à espera de nada”, confessou.
António admitiu que “está a ser uma experiência muito enriquecedora” e que o ajuda “a crescer como pessoa”. E explicou: “quando me deito na cama sinto um alívio por ter ajudado e ter contribuído para melhorar o dia de alguém”. Apesar de saber o que se passa, António não tinha a consciência da dimensão real do problema. “As pessoas preferem nem dizer os nomes por vergonha ou medo. Há muitos que nem aqui vêm por vergonha”.
Por norma, o gestor participa no projecto duas vezes por semana. “Às vezes o trabalho não permite e quando não consigo vir já fico com pena, porque já tenho aquele bichinho”. Segundo este bracarense, “é preciso despertar consciência de que há que pessoas precisam de nós e não custa nada dar um bocadinho do nosso tempo para ajudar”. A Cruz Vermelha tem, de acordo com aquele voluntário, “um papel fantástico e deve-se reconhecer e enaltecer o trabalho em prol da sociedade”.
Pedro (nome fictício) foi outro dos voluntários presentes naquela noite. Já esteve do outro lado, mas conseguiu vencer e dar a volta por cima. Hoje trabalha na Cruz Vermelha e nos tempos livres é voluntário da instituição. “Já passei por isto, fui toxicodependente e sei dar o valor e reconhecer o que fizeram por mim. Eu sou o exemplo que dar a volta por cima é possível”, apelou o jovem, admitindo que agora estar deste lado também “não é fácil, porque são pessoas muito revoltadas”.