Ana Carrilho, in "Expresso"
A “turistificação” da Baixa lisboeta preocupa moradores, comerciantes, que não conseguem pagar rendas de milhares de euros, e especialistas.
Fazem-se filas para tirar uma foto à mesa da Brasileira com Fernando Pessoa; gente atropela-se para ver músicos à procura de uma moeda; ouve-se uma mistura de línguas que dá a ideia que todo o mundo está em Lisboa.
Estamos no Chiado. À volta, a paisagem mudou muito nos últimos anos. Edifícios velhos ou mesmo em ruínas foram reconvertidos. Têm cara lavada e estruturas mais sólidas. A maioria mudou de funções. O comércio tradicional quase desapareceu e deu lugar a lojas de marca, restaurantes “gourmet” ou de comida rápida, cafés, pastelarias e gelatarias, hotéis, “hostels” e alojamentos locais.
Os turistas elogiam o sol (e a luz de Lisboa), o património, a gastronomia e o pitoresco. E os lisboetas, conhecidas pela hospitalidade. Pode estar aí o problema? Afinal, aquele turista que visita Lisboa atrás da sugestão de “morar num bairro popular e ir à mercearia como fazem as gentes locais com quem pode conviver” pode queixar-se de publicidade enganosa, diz a arquitecta Fabiana Pavel.
“As pessoas estão a ser expulsas dos bairros”, afirma a arquitecta, que, recentemente, defendeu a sua tese de doutoramento sobre a “turistificação” do Bairro Alto, aquele que conhece bem e adoptou como seu há mais de uma década.
“É verdade que os prédios estavam – e muitos ainda estão – degradados, são necessárias obras. E, se a câmara não tem dinheiro, é bom que os privados as façam, restituindo uma cidade conservada”, admite. Mas, sublinha, as boas práticas de reabilitação não se baseiam apenas no restauro físico dos edifícios.
Se dentro de dez anos o “boom” da Lisboa turística acabar, vamos ter um centro histórico eventualmente reabilitado, mas vazio porque a população teve que sair e as lojas já não têm nada a ver com comércio de proximidade, diz Fabiana Pavel, à mesa do Solar dos Galegos, no início das Escadinhas do Duque.
Atenta à conversa, a proprietária do espaço, Rosa Perez, tem um exemplo para dar: a falta de um supermercado onde os moradores do Bairro Alto possam fazer as compras diárias. E resume: “Só há restaurantes, bares, cafés, todo o outro comércio deixou de existir. É tudo para o turista!”
Sem resistir às lágrimas, diz que a autarquia só olha para os lucros que vai ter com licenças e alvarás. “Então, e as pessoas, são números? Lisboa é linda, mas tirem daqui as pessoas e quero ver para que serve”, desabafa.
Nascida e a viver há 55 anos no mesmo prédio onde explora o restaurante, Rosa confessa que já foi abordada várias vezes para trespassar o estabelecimento. Tem resistido, mas não sabe até quando vai aguentar.
Quem vai vender flores?
É uma luta que a sua vizinha florista, do outro lado da rua, no edifício do Solar do Vinho do Porto, já perdeu. No Jardim das Rosas está a única florista da zona. Em breve, ninguém venderá flores por ali. O resto do comércio do prédio – uma papelaria, um café e dois bares – também vai desaparecer.
“Os turistas vêm só para ver turistas porque daqui a pouco não há mais nada”, prevê Rosa. “Acabam com o pequeno comércio, com as lojas tradicionais e é só hotéis, só hotéis. E se não põem um travão nisto, Lisboa deixa de ser o que era.”
Em poucos metros há vários edifícios, quase todos propriedade da Santa Casa Misericórdia de Lisboa, incluindo a antiga Hemeroteca Municipal, que estão em obras, transformando num imenso estaleiro a zona mesmo à entrada do Bairro Alto.
Lá dentro, continuamos a ver andaimes e mais anúncios de obras para um futuro breve. Casas de bairro transformadas em hotéis, hostels ou alojamentos locais que rendem aos senhorios muito mais do que uma renda de um morador.
Essa é uma das razões que leva à expulsão dos moradores. Uns são obrigados a sair mesmo antes das obras, outros são confrontados com rendas que não podem pagar. Outros ainda só queriam paz e sossego. “Não conheço a minha vizinhança, tirando as pessoas mais idosas que conheço há muitos anos”, diz Fabiana Pavel.
Veículos "tuk tuk" a caminho de Alfama
A vizinhança da arquitecta são turistas que estão sempre a mudar. Aponta o que diz ser o principal problema: o predomínio do turismo de baixo custo, que atrai sobretudo os mais novos. “Instalou-se a ideia de que aqui tudo é possível, tornou-se uma espécie de Disneyland”.
Assumindo ter a sorte de morar num quarto andar, Fabiana diz que a noite no Bairro Alto é insuportável que quem mora nos primeiros andares tem problemas muito graves – barulho, higiene, limpeza, segurança. E, sem comércio de proximidade, quem pode procura melhores condições de vida e sossego noutras paragens.
O bairro de dia
Uma volta pelo Bairro Alto a meio da tarde: pouca gente na rua e silêncio entrecortado com som de rodas de malas de viagem, que passou a ser “característico”. Cafés, bares, clubes nocturnos e restaurantes fechados, à espera dos clientes. Abertas, apenas as lojas de conveniência exploradas por indianos e chineses. Muitas casas devolutas, edifícios em ruínas que fazem parte da história do jornalismo português, um mercado fechado há anos.
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De regresso à Rua da Misericórdia encontramos as novas lojas de designers, estilistas, decoração, artesanato e a resistente loja dos Cafés Macário. Mas, a chegar ao Largo Camões, vêem-se logo mais andaimes. A papelaria dedicada às artes e a ourivesaria já desapareceram. Atrás da estátua do poeta, o edifício que antes albergava o Consulado do Brasil é agora um enorme hostel. Até à Rua do Loreto encontramos turistas que fazem fila para provar pastéis de nata em várias casas da especialidade, cada uma reivindicando o rótulo de qualidade.
Há algum pequeno comércio tenta resistir, lojas de artesanato ou gourmet, lojas fechadas à espera de destino, outras a fechar portas por estes dias para dar lugar a mais alojamentos de curta duração. É o caso do antigo edifício Officina Real. Que se saiba, nada está pensado para habitação permanente: o objectivo é responder às necessidades de alojamento dos turistas.
“Quanto mais vierem, melhor”
“Não podemos deixar de apoiar todo aquele que nos visita, fica alguns dias, vai embora e dá lugar a outros. É uma situação que também dá dinâmica à Baixa”, argumenta o presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina, Manuel Lopes. Não sendo possível preencher o edificado com residentes, esta é uma boa opção para os proprietários, defende.
Pondo um pouco de “água na fervura” da indignação crescente com o aumento do número de hotéis, hostels, alojamentos de curta duração, restaurantes e serviços criados a pensar nos turistas, Manuel Lopes mostra-se satisfeito com o aumento do número de estrangeiros na capital.
A Casa Frazão resignou-se a pagar uma renda mensal superior a 3 mil euros
“Muitos julgam que há gente a mais, eu não. E quanto mais vierem, melhor. Por isso, é preciso que tenham onde ficar”, diz Manuel Lopes, que, contudo, partilha os receios do comércio tradicional, a desaparecer rapidamente da Baixa.
“Com o credo na boca”
Um dos comerciantes preocupados é Guilherme Paes, sócio da Retrosaria Adriano Pereira Coelho, hoje, a mais antiga da Rua da Conceição, tão velha como a República.
“O prédio está completamente devoluto e somos o único estabelecimento do prédio que vai do nº 121 ao 129”, conta.
“Como a generalidade dos comerciantes da Baixa, estamos sempre com o credo na boca porque a qualquer altura podemos receber uma carta do senhorio a dizer que o prédio foi vendido, vai para remodelação, vai para hotel e temos que ir embora. E esta Lei das Rendas está feita para termos que ir mesmo. E assim vai acabando o pequeno comércio.”
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A Rua da Conceição já perdeu a maior parte das suas retrosarias, um comércio que interessa pouco a turistas e mais a costureiras, alfaiates ou pessoas adeptas de trabalhos manuais. Muitas desapareceram porque também deixaram de ter clientes.
Sem precisar de fazer contas, Guilherme Paes afirma que nos últimos anos muitos milhares de pessoas deixaram de trabalhar naquela zona. Reconhece que os edifícios já recuperados ficaram mais bonitos e dão uma imagem mais digna à Rua Augusta, uma das mais importantes da capital. Mas acredita que, mesmo que alguns fossem transformados em hotéis, poderiam continuar com o comércio tradicional.
O Parlamento aprovou, a 8 de Abril, um projecto de lei do PS que visa um regime de classificação e protecção de lojas históricas e entidades com interesse histórico e cultural, para efeitos de arrendamento.
O presidente da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina espera que se preserve “estas pequenas histórias que fazem parte da vida comercial da nossa cidade e especialmente, da nossa Baixa.
Muitas delas, pela sua originalidade, merecem agora especial atenção dos turistas. É o caso da Londres Salão, na Rua Augusta, quase a chegar ao Rossio. Com mais de 60 anos de história, hoje, mais de metade das vendas de tecidos são para turistas, o que não acontecia antes. “Vê-se que os estrangeiros procuram e já há pouco. E nós que temos este potencial, estamos a destruí-lo”, lamenta Alzira Gonçalves, uma das funcionárias mais antigas da loja.
O prédio é da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e vai ser reabilitado – resta saber o que vai acontecer com a Londres Salão. Ao lado, outra das lojas emblemáticas na venda de tecidos na Baixa, a Casa Frazão, resignou-se a pagar uma renda mensal superior a 3 mil euros, depois de muita negociação com o proprietário.
Nos últimos anos outras lojas desapareceram. Sapatarias finas, lojas de modas, alfaiates. Cafés Pereira da Conceição, Sapataria Lord ou Alfaiataria Pitta resistem, mas a Nunes Corrêa, que vestiu os homens com elegância durante 160 anos, cede agora o espaço a uma multinacional de produtos de maquilhagem. Ficou o brasão.