Há poucos dias, tive o privilégio de assistir a uma palestra de Catarina Furtado, que, na qualidade de Embaixadora da Boa Vontade, das Nações Unidas, falou para uma plateia de quase 300 adolescentes numa escola de ensino profissional (10.º, 11.º, e 12.º anos de escolaridade) e abordou algumas questões que preocupam hoje a juventude.
Ao longo de quase duas horas de diálogo, muitos foram os depoimentos espontâneos de jovens que relataram terem sido, de um modo ou outro, vítimas de bullying, seja sob a forma física seja psicológica, nas escolas por onde andaram, principalmente nas do 1.º ciclo do ensino básico.
Testemunhos emotivos, que guardaram durante anos, mas que encontraram, finalmente, o momento e o ambiente oportunos para partilhar, sem rodeios ou constrangimentos, com os colegas e professores, que os iam aplaudindo ora de pé ora entre vivas e lágrimas a correrem pelos rostos.
Gostaria de registar, aqui, dois desses muitos e tocantes testemunhos, por terem um aspeto comum: o estado de pobreza.
Pobreza, essa, que na altura levou os colegas a segregá-los, a vexá-los e a humilhá-los publicamente, durante tempo demais, segundo eles, sem que nada fosse feito, por terem a roupa rota ou por andarem sempre vestidos com o mesmo e, consequentemente, acabarem por cheirar mal.
E por que razão seria? Nunca os questionaram? Nem os colegas nem quem deveria estar atento e saber o motivo? Mas eles disseram-no ali, e a sala ouviu-os.
Um, o Vítor (nome fictício), tinha vindo de São Tomé e Príncipes, aos 10 anos – para cuidar e acompanhar o pai, que precisava de tratamento de hemodiálise –, apenas com a “roupa do corpo” e os ténis, que usou durante um ano. Lavava-os de noite e calçava-os, ainda molhados, no dia seguinte.
A roupa, que na verdade cheirava mal, também a lavava ao fim de semana e andava com a camisa do pai, por casa, enquanto secava...
Hoje joga no Benfica. Já ganha algum dinheiro, que envia para o pai e os irmãos, para comprarem roupa e ténis, em São Tomé, enquanto tira o curso profissional de Técnico de Apoio à Gestão Desportiva. É bom aluno e a Catarina prometeu ir vê-lo jogar. Chorava enquanto recordava esse período da vida, mas confessa que é feliz agora, na companhia dos colegas de turma e de escola.
A história da Maria (nome fictício) difere só no facto de o pai a ter deixado com a mãe, numa casa mínima, que a mãe mesmo assim não conseguiu pagar, acabando ambas a morar na rua durante tempo demais.
A roupa passou a cheirar mal. Os colegas faziam troça e riam-se dela. Como se isso não bastasse, por vezes atiravam os poucos pertences que trazia na mochila para a sanita; não brincavam com ela, não se sentavam ao pé dela; não lhe emprestavam o material escolar que lhe faltava. As crianças não são sempre uns “anjos”.
Agora, remata com um sorriso: “Sinto-me feliz, já temos casa e gosto de andar nesta escola.” Aplausos e vivas na sala.
Estes dois testemunhos, que escutei de meninos de um meio carenciado, mas que se confessam hoje felizes na escola que frequentam, recordaram-me uma crónica que li, há pouco tempo, de Catarina da Eira Ballestero, e cujo título é bem ilustrativo deste tipo de bullying praticado interpares nos espaços escolares: “Não quero ser tua amiga porque pareces pobre.”
Escrevia nessa sua crónica que, durante alguns dias, estranhou o comportamento da filha, até esta desabafar com o pai que estava zangada com as amiguinhas da aula, porque elas já não queriam brincar com ela, “por ela parecer pobre”.
Estou a referir-me a meninas de um colégio privado de Lisboa e à filha de uma jornalista, mas que tem uma visão e valores muito acima dos que, seguramente, começam a ser “padronizados” pelos pais/encarregados de educação de muitas crianças, que valorizam marcas de roupas, tendências ditadas por influenciadores mirins ou gadgets, mesmo quando as crianças não têm idade para os utilizarem.
Só que a Carmo, nos seus 5 anos, ainda não compreende isso. A “Maria” e o “Vítor”, na altura, também não.
As reações que as crianças revelam são muitas vezes fruto dos valores que percecionam nas conversas e atitudes dos adultos.
Sem querer trazer para aqui análises académicas, permitam-me recordar que já Piaget e Vygotsky concluíam que a criança aprende por imitação, replica os comportamentos e tende a ter o mesmo olhar sobre as coisas.
Os pensamentos e o comportamento da criança funcionam, inicialmente, como uma repetição daquilo que vê e vivencia. Podemos até dizer, que a criança é como um radar que capta e armazena tudo na memória, para mais tarde o reproduzir e usar como algo que é seu.
Os adultos são, frequentemente, uma fonte reprodutora deste tipo de comportamentos. É possível que, também eles, julguem os colegas de trabalho – ou os condóminos do prédio (pelo tapete da porta) ou os vizinhos do toldo da praia (pelo tipo de toalha ou fato de banho) – pelo modelo do automóvel, pela marca da carteira, pelo tipo de telemóvel, pela mochila do filho, pela marca dos ténis, pelos locais onde passam férias ou até pelos restaurantes que frequentam.
Pertencem ao grupo daqueles que ainda compram um livro pelo aspeto da capa. Quando crescer, a Carmo, que lerá a crónica da mãe, irá valorizá-la (e muito) por isso, o que será o mais importante!
A escola por vezes também não ajuda, pois conduz aos mais variados tipos de julgamentos e discriminações quando os professores perguntam, a propósito de trabalhos na sala de aula, qual o destino de férias, quais as prendas recebidas no Natal, quais os programas de fim-de-semana, entre tantas outras coisas que diferenciam as crianças consoante o seu poder aquisitivo.
O espaço escola é, por excelência, o local onde as crianças passam mais tempo interpares e, naturalmente, o ambiente em que exibem os seus “padrões” e em que se agregam por “grupos de pertença”, expulsando sem piedade as outras crianças que estejam à mercê do seu escrutínio.
Na escola são ditadas tendências, são definidas regras e são penalizadas pelos próprios pares as crianças que não se enquadram nessas regras.
É sabido e está sobejamente estudado o peso que os bens materiais assumem, infelizmente, como “construtores” valorativos das pessoas que os utilizam.
Como é que explicamos a uma criança, nas aulas de Cidadania, que não é ser pobre ou ser rico que nos torna melhores seres humanos, que isso pouco importa nas nossas vidas, quando elas ouvem precisamente o contrário dos adultos que as rodeiam?
Teremos, então, de explicar aos adultos, quer sejam pais/encarregados de educação, professores aos agentes significativos, que não se é pobre, está-se em situação de pobreza, que pode e deve ser transitória.
Não tenho remédios que possa receitar, a não ser recomendar leituras e bom senso.
No entanto, o que tento e continuarei sempre a tentar é que deixemos de lado os “sinais exteriores de riqueza” e valorizemos “os sinais interiores de riqueza”, esses, sim, merecedores da nossa atenção e do respeito.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990
Título alterado às 20h51 para se distinguir da crónica de Catarina da Eira Ballestero citada neste texto, que pode ser lida aqui.