Inês Silva, in Público
Aos 33 anos, e depois de um burnout, o oncologista no IPO do Porto decidiu pousar o estetoscópio. Após anunciar a decisão, João Dias ficou “assustado” com as mensagens que recebeu de outros profissionais: “As pessoas estão cansadas e a pedir ajuda.” Um testemunho na primeira pessoa, construído a partir de uma entrevista.“Desde criança que achava que queria ser médico. Felizmente, as notas sempre foram acompanhando essa possibilidade.
Durante o curso, fazia voluntariado na Cruz Vermelha Portuguesa e era técnico de emergência tripulante de ambulância, portanto já tinha algum contacto com o sistema de saúde. Já sabia como é que algumas coisas funcionavam, mas mantinha a ideia muito romantizada do médico como alguém que resolve problemas e que tem um papel activo de decisão e raciocínio lógico, com a vertente humanista de ajuda ao próximo.
“Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.”
Fiz o internato entre 2014 e 2019. Depois de fazer o estágio em medicina interna fiquei um bocadinho desencantado. Era uma especialidade muito interessante, mas também muito desgastante e queria algo mais especializado. Acabou por aparecer a oncologia.
Começar a trabalhar é um choque de realidade. O que eu sentia é que somos peças de uma engrenagem numa máquina que nem sempre tem os mesmos objectivos e os mesmos valores que nós temos. Não é uma máquina que esteja oleada para dar o melhor que pode aos doentes, às vezes. E essa frustração começa a acumular-se.
Fui médico especialista durante três anos. Quando decidi afastar-me, tinha passado por um período complicado em termos de saúde mental. Estava claramente em burnout. Andei em consultas de psicologia e de psiquiatria, fui medicado com antidepressivos. Nunca parei de trabalhar, porque, felizmente, comecei a identificar os sinais cedo — também tenho formação nisso.
“Eu quero acreditar que, do ponto de vista técnico, me concentrei sempre para tomar as melhores decisões, mas não tenho dúvidas que, do ponto de vista de comunicação, muitas vezes podia ter sido melhor . E só não fui porque estava esgotado.”
‘Estava esgotado’
No IPO do Porto, estivemos relativamente salvaguardados durante a pandemia de covid-19, mas depois começámos a levar com as consequências. Percebemos que tínhamos doentes a chegar numa fase mais avançada, não sei se por atrasos nos diagnósticos, mas muito por causa de terem receio de procurar ajuda.
Foi por volta de Maio/Junho de 2021 que comecei a ter a percepção de um grande peso de responsabilidade e a acusar alguns sintomas de burnout. Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.
Ao fim de algum tempo, os sintomas acabam por transparecer para os doentes também, porque estamos um bocadinho mais irritáveis, temos menos paciência para explicar as coisas, respondemos mais impulsivamente.
Foi por volta de Maio/Junho de 2021 que comecei a ter a percepção de um grande peso de responsabilidade e a acusar alguns sintomas de burnout. Chegava às consultas e tinha uma lista de 13 doentes para ver, com doenças graves, e sabia que, acontecesse o que acontecesse, tinha de os ver a todos.
Ao fim de algum tempo, os sintomas acabam por transparecer para os doentes também, porque estamos um bocadinho mais irritáveis, temos menos paciência para explicar as coisas, respondemos mais impulsivamente.
“Quando um profissional percebe que está tudo nas mãos dele e não se sente tão amparado como poderia estar, o desgaste é três vezes maior.”
Acabou por prevalecer a ideia de me afastar da prática clínica durante uns anos e também apareceu uma proposta diferente, numa empresa de biotecnologia em saúde. Um trabalho de consultoria na área médica, que me permite terminar o doutoramento do qual tive de desistir — porque não estava a conseguir conciliar com o internato da especialidade — e trabalhar remotamente, para voltar a reorganizar os eixos.
Como se mede a qualidade na saúde?
Posso dar um exemplo do excesso de trabalho: a Ordem dos Médicos prevê que uma primeira consulta em oncologia demore uma hora e que a consulta subsequente demore, em média, 30 minutos. O tempo que me davam era 30 minutos para uma primeira consulta, portanto metade, e o tempo de uma subsequente é 20 minutos.
Acho que há um problema na regulação da prática médica que não serve a sociedade enquanto estiver baseado neste sistema de Ordens, que, de facto, não têm capacidade de o fazer, nem interesse em fazê-lo. Também não têm poder suficiente para se impor perante o Estado, ou perante os privados, para exigir que as coisas fossem feitas com outra qualidade e preocupação.
É uma discussão muito grande, até do ponto de vista internacional, saber como é que se mede a qualidade na saúde. É pelo número de consultas? É pelo número de cirurgias? Não é, nós sabemos que não. É mais ou menos irrelevante quantas consultas fazemos. É sempre muito mais valorizada a componente de gestão do que a componente de ser médico, porque esta é mais difícil de avaliar.
Os ‘heróis’ que continuam no SNS
O doente acaba por estar sempre muito perdido no meio do sistema e agarra-se ao que pode, que é o profissional que tem à frente, que muitas vezes não é o responsável pela maneira como as coisas estão. Quando um profissional percebe que está tudo nas mãos dele e não se sente tão amparado como poderia estar, o desgaste é três vezes maior. Já não falo das coisas do dia-a-dia: da impressora que não tem papel ou do computador que encrava uma vez por consulta. Isto são coisas que nós já damos de barato.
Nota-se que há muitos colegas que trabalham no SNS com muita dedicação e nem imaginam mudar de vida, por exemplo, porque têm família e uma vida estável. Não estou a dizer que estão presos, mas há um bocadinho essa acomodação, que eu compreendo perfeitamente, mas que traz um problema: acabamos por ser pouco participativos na organização dos serviços e na organização do trabalho, porque estamos em modo de defesa, a fazer a nossa rotina e a não nos chatearmos muito. Há esse desalento entre os profissionais, de que aquilo que está mal nunca vai mudar.
Há, por outro lado, um grupo de profissionais que está num espírito de luta constante para tentar melhorar as condições. O que é triste para mim ver é que, neste momento, tentar promover melhorias no SNS é totalmente remar contra a maré. Vamos sempre ‘bater’ nas burocracias, no ‘sempre foi assim, porque é que vais mudar agora?’. Nesse sentido, os que continuam a trabalhar no SNS, para mim, são heróis, porque a esmagadora maioria dos profissionais está a tentar fazer o seu dia-a-dia, a sobreviver ou nesta luta contínua de tentar resolver as coisas — que não devia ser uma luta, mas é.
Portugal é um dos países da OCDE com mais médicos per capita, portanto não há falta de médicos. Há é falta de vontade dos médicos para trabalharem no SNS, porque são mal pagos. As pessoas preferem despedir-se porque se é para ganhar mais como tarefeiro e não têm vantagens em ser médicos no quadro, então mais vale ser tarefeiro.
É quase motivo de chacota quando um médico português diz a um médico estrangeiro quanto ganha. Já me perguntaram se o meu salário era por semana quando eu lhes disse o número. Toda a gente ficava muito chocada quando percebia que aquele era o salário mensal de um especialista. Salários mais dignos, processos mais transparentes, equipas mais fortes provavelmente voltariam a trazer muitos médicos para o SNS.
Eu sei que muitos dos problemas não são problemas do SNS, são problemas de Portugal, nomeadamente a questão da falta de transparência. Eu já passei pelo privado, muito pouco tempo, e via exactamente as mesmas coisas: a mesma burocracia, as mesmas papeladas (ou ainda pior, porque depois há a questão financeira dos seguros) e via os mesmos nomes em cargos de liderança.
“Se calhar, se eu soubesse o que sei hoje não entraria em Medicina. Mas se eu não tivesse entrado em Medicina também não saberia o que sei hoje.”
Um sentimento partilhado por outros médicos
Se calhar, se eu soubesse o que sei hoje, não entraria em Medicina. Mas se eu não tivesse entrado em Medicina também não saberia o que sei hoje. Não sou daquelas pessoas que acham que a Medicina é uma vocação, mas acho que é possível que, um dia, volte a querer ser médico e a querer fazer medicina clínica. Provavelmente, já voltarei noutra perspectiva.
Eu acho que o SNS está num momento de crise importante e, de facto, se não houver vontade e capacidade de ultrapassar este momento, o resultado pode ser uma destruição do SNS. Não duvido disso.
Eu diria que é um sistema que herdou uma ambição de prestar cuidados de saúde de qualidade e humanistas, mas que está a deitar fora essa herança por más decisões de gestão consecutivas. E, neste momento, está assegurado por aqueles trabalhadores heróicos que, apesar do sistema, continuam, todos os dias, a tentar resolver os problemas, mas não conseguem pegar no sistema e torná-lo novamente sustentável quando estão só focados a resolver a rotina diária.
Uma palavra final para os últimos dias. Após a minha publicação no Facebook e Twitter, tive muitos médicos a contactar-me. Fiquei assustado. Além das mensagens de encorajamento e apoio, muita gente partilhou frustrações, dizendo identificar-se com o que escrevi e confessando desejar ter coragem de tomar uma atitude igual. De saírem.
Alguns pediram conselhos concretos para o fazer, outros partilharam motivos pelos quais não podem (ou não o pensam) fazer agora, mas que talvez o façam um dia. As pessoas estão cansadas e a pedir ajuda. Querem manter-se no SNS, mas com a perspectiva de que os problemas parecem não ter solução, porque falta vontade em resolvê-los, sonham com a saída. Enquanto não voltarmos a colocar o foco do SNS nos trabalhadores e nos utentes, vamos ver a mesma degradação do sistema.”
Texto editado por Renata Monteiro