27.3.23

O que pode a igreja fazer com padres acusados? Suspender? Retirar de funções que envolvam crianças? Uma discussão com bispos e um canonista

António Marujo, in JN

O debate e a polémica instalaram-se na sociedade portuguesa depois das conclusões do relatório da Comissão Independente e da conferência de imprensa da Conferência Episcopal. António Marujo, jornalista do 7Margens e que há muito acompanha a informação sobre a Igreja Católica, olha para o tema

E afinal, o que pode – e o que deve – um bispo fazer com um padre acusado de abusos sexuais? Suspendê-lo preventivamente? Retirá-lo de determinadas funções que possam ser propícias ao contacto com crianças e jovens (ou adultos vulneráveis)? O debate tornou-se presente esta semana depois de o cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, ter dito que não se pode suspender um padre acusado de abusos “sem que haja factos comprovados, sujeitos a contraditório”, bem como um processo canónico na Santa Sé. Mas dois comunicados hoje mesmo divulgados tornaram-na de novo premente, ao dar conta do afastamento temporário de três padres, que ficam impedidos de exercer funções públicas: dois em Angra e um em Évora.

Pode parecer, mas o problema não será só de semântica: a suspensão “é uma pena muito grave”, disse o patriarca aos jornalistas, no final da missa que se seguiu à procissão do Senhor dos Passos, em Lisboa, domingo passado. “Não é uma coisa que um bispo possa fazer por si”, acrescentou.

Na sexta-feira, na conferência de imprensa depois da assembleia plenária dos bispos, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas, também se manifestara contra a hipótese de suspensão preventiva de um padre: “Não posso tirar uma pessoa do ministério porque chegou alguém que disse ‘Este senhor abusou de alguém’. Quem foi que disse? Em que lugar? Quando? Tirar um padre do ministério é uma coisa grave, enquanto não for minimamente provado, a pessoa mantém a sua credibilidade.”

O debate instalou-se, desde logo no interior do episcopado.

Na segunda-feira, o bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, escreveu na sua página na rede Facebook que é possível limitar as funções de um padre acusado de abusos. Recorrendo ao Vademecum do Vaticano para tratar os casos de abuso sexual cometidos por padres, o bispo escrevia que aquele documento prevê que o bispo possa tomar “medidas de tipo administrativo contra a pessoa denunciada, que poderão levar a limitações no ministério”.

Ou seja, antes de chegar à suspensão pode haver outras medidas. Num extenso esclarecimento publicado no jornal digital 7Margens, o canonista Mário Rui de Oliveira, que trabalha num dos tribunais superiores do Vaticano, dizia que em relação aos casos de abusos de menores e de pessoas vulneráveis, o bispo Nuno Almeida “está a ser mais fiel à legislação prevista para esses casos e que agora preocupam a sociedade e a Igreja de Portugal”. Doutor em direito canónico com especialização em jurisprudência penal, Mário Rui de Oliveira, escrevia que o cardeal Clemente e o bispo Ornelas teriam razão “se considerarmos as suas declarações no contexto de um processo penal normal já iniciado” – por exemplo, um padre “acusado de cometer um determinado abuso sexual com uma pessoa maior de 18 anos”.

No entanto, acrescentava o canonista: “As medidas cautelares não são penas (as penas só se impõem ao final do processo penal) mas disposições disciplinares (administrativas) com o objetivo de prevenir escândalos, tutelar a liberdade das testemunhas e garantir o decorrer da justiça; por isso não se pode falar de lesar a presunção de inocência, até porque estas medidas devem ser revogadas logo que cesse a causa pela qual foram impostas e cessam pelo próprio direito se o processo penal terminar.”

A avaliar pela argumentação aduzida hoje mesmo por dois bispos, é isso que está em causa: em Angra, o bispo Armando Esteves Domingues falou com dois padres (um de São Miguel, outro da Terceira) “e em conjunto acordaram” que ambos “ficarão impedidos do exercício público do ministério até ao final do processo de investigação prévia, que já foi iniciado na Diocese e de acordo com as normas canónicas”.

Em nenhum dos casos a decisão traduz “uma assumpção de culpa dos próprios nem uma condenação” do bispo, diz o comunicado. “Trata-se de seguir aquilo que o Papa Francisco tem recomendado como norma e prática da Igreja em matéria de abusos, sobretudo depois da publicação do Vademecum sobre procedimentos para enfrentar casos de abuso de menores na Igreja”.

Também o arcebispo Francisco Senra Coelho, de Évora, anunciou o “afastamento cautelar” de um padre “do ofício de pároco e de todas as actividades pastorais que incluam contacto com menores, sem prejuízo da sua presunção de inocência”.

No próprio Patriarcado de Lisboa também houve padres recentemente afastados temporariamente das suas funções enquanto decorriam averiguações prévias e os processos corriam no Vaticano.

Durante a reunião do episcopado de sexta-feira passada, o bispo Nuno Almeida terá sido uma das vozes a pedir medidas mais concretas de resposta às vítimas de abusos sexuais. Como que fundamentando a sua posição, escrevia no Facebook: “O bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar, com a devida atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado. Deverá dar todo o apoio e protecção possíveis às vítimas e retirar as consequências necessárias”. Esse seria, acrescentava, um dos “caminhos de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados”, que deveria ser posto em prática, “sem hesitação”, de acordo com os números 9-31 do Vademecum.

Citando depois outros pontos (58-65) do mesmo documento, Nuno Almeida defendia que a retirada de um agressor da sua função é uma medida cautelar que pode “incluir o afastamento ou proibição de exercício do ministério enquanto decorre a ‘investigação prévia’, ou após a sua conclusão” – o que acontece com os as decisões agora divulgadas em Angra e Évora.

Mário Rui de Oliveira, que também é poeta e autor do recente O Livro da Consolação, considera que o bispo auxiliar de Braga tem razão ainda “quando defende que já na fase preliminar ao processo penal propriamente dito o bispo pode impor algumas medidas disciplinares (não penais) nos casos em que se investiga sobre abusos de menores”. De qualquer modo, é líquido que, como o especialista em Direito Canónico chama a atenção, “para haver uma condenação (ou absolvição) do acusado será obrigatório iniciar um processo penal que pode decidir continuar ou não com essas medidas cautelares”.

Neste debate, o bispo auxiliar de Braga não quis esquecer os alegados agressores: eles não devem ser abandonados, porque a “redenção é sempre possível”, exigindo-se a “admissão da culpa” por parte do acusado. “Diante dos abusos, especialmente aqueles cometidos por membros da Igreja, não basta pedir perdão”, escrevia, insistindo: “A medida cautelar não é uma pena, pois as penas só se impõem no final de um processo penal, mas um acto administrativo.”