Há centenas de residências clandestinas a operar, algumas com ordem de fecho de meses ou anos. “As pessoas preferem ser bem tratadas em lares ilegais do que maltratadas em lares legais.” e
Do lado de fora, nada sugere a quem passa que a vivenda de telhado baixo, num bairro onde tantas outras casas de diferentes tamanhos se alinham por pacatos passeios, é na realidade uma residência para 12 pessoas vencidas pela idade, a imobilidade, a solidão, a demência.
A porta principal abre para um corredor estreito e escuro, que liga a um quarto pequeno com três camas, uma sala apertada na penumbra, onde, coladas umas às outras, estão nove pessoas sentadas no sofá e em três cadeiras com almofadas, umas a dormitar, de cabeça caída, outras acordadas, olhando sem interesse para a televisão.
Perderam a juventude e a independência e passam horas numa interminável espera: o levante, a higiene, o lanche da manhã ou da tarde, o almoço, e o jantar, para fecharem o dia, quase sempre, antes das 19h.
A cuidar das oito pessoas, com mais de 80 anos, neste piso de baixo, e de outras quatro enclausuradas no de cima, está uma auxiliar de avental, que não se abstém de abrir a casa a desconhecidos mesmo na ausência e sem autorização da patroa.
Quando, por lealdade, uma utente lhe assinala o dever de avisar a proprietária, a auxiliar de avental acede a pegar no telefone, e fá-lo com tranquilidade, como se no íntimo soubesse que este dia haveria de chegar, ao cabo de um mês em que as reportagens sobre lares licenciados ou clandestinos expuseram a falta de higiene e de cuidados mínimos. Um deles, na Lourinhã, recebeu ordem de fecho na sequência de uma peça na SIC. Outro, em Palmela, fechou com urgência depois de uma investigação da Polícia Judiciária, que recebeu uma denúncia presencial. Houve outros casos divulgados.
Minutos depois do telefonema, chega Vanda, a proprietária. Não quer dar o apelido nem dar entrevista. “Estamos só a conversar”, diz sem disfarçar o nervosismo. “Estou com o coração aos saltos”, desabafa sobre a inesperada visita.
Um lar legal tem de ser todo construído de raiz, assinala Vanda, que impõe como condição para conversar que nada identifique a casa que gere há "muitos anos". "Não há dinheiro para fazer essa obra de raiz, nem as pessoas têm dinheiro para pagar um local com outras instalações", continua. Aqui, uns pagam 550, outros 600 euros, garante.
Cai uma chuva miúda e as duas janelas pequenas têm os vidros fechados e as cortinas corridas na sala entranhada de um odor indefinido mas forte.
“Estamos muito bem aqui”, antecipa-se a mesma senhora que manifestou a sua lealdade à patroa. É a que está mais desperta e aparenta ser a mais esclarecida. Apoia-se, embora sentada, numa bengala, chegando-se à frente para melhor ser ouvida, como que assumindo esse papel de porta-voz das companheiras de residência.
Junto à cozinha, também exígua e de fraca luz, sobre um pequeno quadrado de mesa com uma toalha florida, a funcionária de avental barra manteiga em pão de forma e a que apressadamente junta uma bebida nuns copos de plástico, levando depois tudo num tabuleiro para a sala.
É hora do lanche, mas lá em cima, ao cimo de umas escadas de madeira escura, que contorna a pique a esquina da cozinha, estão dois homens e duas mulheres que nunca descem. Em cada um dos cerca de 15 degraus, íngremes, não cabem sequer duas pessoas.
No cimo sem poder descer
Nesse mundo dos quatro à parte, como que enclausurados, uma senhora acanha os braços no curto espaço de uma mesa pouco estável, e acompanha a imagem desfocada de uma pequena televisão cinzenta de outros tempos. Queria sair daqui? Responde que sim, mas pouco à vontade. A proprietária desvaloriza: “Essa senhora só quer ir à missa.”
A senhora de olhar triste e sem ponta de desmazelo já perdeu a conta aos dias que não vai à missa ou a qualquer outro lugar. A seu lado, está uma mulher como ela, mas mais velha, que parece não (querer) comunicar, e um senhor da mesma idade, agarrado a uma cama, limitado nos movimentos, mas que acena com a cabeça ao mesmo tempo que diz “boa tarde” com um sorriso. De costas para a porta em frente, junto à mesma escada, ergue-se a forma de um corpo posicionado de lado, envolto numa coberta branca.
Esta é apenas uma das muitas moradas que uma pessoa do bairro aponta como exemplo de casas onde habitam dez, 15 ou 20 velhos ao cuidado de não profissionais.
Os dias sucedem-se iguais, com ou sem visitas, agendadas quando alguns lares assim o definem, ou exigem, ou a qualquer hora, aqui na freguesia de Quinta do Conde, ou noutros visitados pelo PÚBLICO, e sem licença de funcionamento, nos distritos de Lisboa, Setúbal e Santarém. É comum procurar-se um sítio e serem indicados vários. Alguns fecharam por ordem do Instituto da Segurança Social, mas abriram numa morada próxima tendo como novo proprietário o registo de uma outra pessoa ou empresa.
Na grande maioria, não está prevista fisioterapia de forma regular, mas antes uma ginástica a cargo das próprias auxiliares, nem actividades ou animação, e quando acontece é de forma informal e sem regularidade certa; não existe um contrato com enfermeiro, como dita a lei, e estes profissionais de saúde, como os médicos, são chamados pontualmente quando necessário.
O INEM e a Protecção Civil são contactados sempre que surge uma emergência, garantem os proprietários que aceitaram falar. Nos anos da pandemia, os lares recebiam visitas da Protecção Civil ou da Segurança Social, para operações de despiste de surtos de covid-19 ou (mais tarde) campanhas de vacinação. A regra era essa e nenhuma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) – legal e ilegal – ficava de fora. Mas essa atenção – que permitiu identificar muitos lares sem condições e determinar o seu encerramento – acabou no ano passado.
Nem em Salvaterra de Magos, Muge, Abrantes, Ereira, Loures, Fernão Ferro, Montijo, Palmela ou outros pontos de passagem no caminho aqui percorrido os lares têm visitas de acompanhamento regulares.
A lista que só até à semana passada estava disponível no site da Segurança Social e que assinalava “licenças e actos”, como licenças de utilização, com atribuição de alvará, aviso de caducidade de alvará, mas também as ordens de fecho, com ou sem aplicação de coimas, por incumprimento, de 20 mil euros (podendo ir até aos 40 mil euros), ocupava mais de 170 páginas no site. Eram mais de 850, com cada página a mostrar pelo menos cinco entradas. Nesta semana, essa informação deixou de estar disponível. Contactado, o Instituto da Segurança Social não responde se dispõe de uma estimativa do número de lares sem licença. Apenas informa que, de acordo com os dados mais recentes, "existem 2581 estruturas residenciais para pessoas idosas, das quais 894 são entidades de privados".
Lisboa e Porto foram, na lista dos 18 distritos, os dois onde mais lares foram encerrados com (respectivamente) 33% e 21% do total. Já em 2022, mais fechos (em proporção do total) aconteceram em Aveiro (19%) e Santarém (18%), passando Porto a representar 15% e Lisboa 12% do universo de estruturas residenciais sem condições. "A medida de encerramento sem carácter de urgência tem de ser acatada no máximo nos 30 dias úteis seguintes", confirma o ISS, não revelando porém, apesar de questionado, quantos lares receberam ordem de fecho.
No pátio de mãos dadas
Num pequeno lar, na zona de Salvaterra de Magos, a cozinha com chão de pedra faz de sala onde sete homens e mulheres, que murmuram um imperceptível “bom dia”, fitam a parede ou a pequena televisão, presa no alto, nela abstraídos ou alheados dela. Nesta casa, onde o ar que se respira na zona dos quartos e da casa de banho indica que a única funcionária presente ainda se debate com as limpezas, há desordem de objectos deixados ao acaso num pequeno pátio, mas também há esperança aqui, onde um casal se senta de mãos dadas.
Por serem marido e mulher, beneficiam de um quarto só para eles com casa de banho privada. No resto, a casa está desmazelada mas limpa, e as paredes descascadas pela chuva circundam três ou quatro camas em quartos de pouco mais de 10 metros quadrados. As casas de banho, que servem mais de seis utentes, são apertadas e, embora tenham barras de ferro na sanita, não as têm no cubículo onde são dados os banhos não mais de uma ou duas vezes por semana.
“Gostamos de estar aqui. Está tudo a correr bem”, sorri Manuel, expondo desprevenido os dois únicos dentes. A fragilidade de Manuel na aparência e no discurso estende-se ao dono do espaço, que se curva e quase treme por não querer “nada disto nos jornais”.
Deixa fotografar os quartos, porque não tem “nada a esconder”, diz, mas exige que não seja revelado o seu nome ou a morada da residência. À porta, o aviso de encerramento que o Instituto da Segurança Social obriga a que fique visível por um período de 30 dias está tapado por uma folha branca colada com fitas adesivas pretas.
Nesta rua com casas mas sem gente – que apesar de estar a menos de 50 quilómetros de Lisboa poderia ser um quase fim de mundo –, serão ínfimas as probabilidades de uma fiscalização da Segurança Social para o cumprimento efectivo da ordem de fecho. Actualmente, e a nível nacional, existem 53 inspectores afectos às equipas responsáveis pela fiscalização de equipamentos sociais, responde o gabinete de imprensa do Instituto da Segurança Social.
E há 260 técnicos do Instituto da Segurança Social que também realizam as acções de acompanhamento.
Entrar só com autorização
Teria de haver denúncia e nem os bombeiros se dizem competentes para tal, agora que terminaram as visitas de despiste da covid a estas "casas particulares", onde só entram com autorização dos donos. Estas são pessoas que, por força das circunstâncias, abriram um lar: aprenderam da maneira mais dura quando, sem outras alternativas, se viram a cuidar dos próprios familiares doentes ou acamados; viram aqui uma oportunidade de negócio.
Pode haver vontade em ajudar o próximo, desempenhar um papel social, mas não está afastado o risco de eventuais falhas que possam advir do desconhecimento do rigor de cuidados exigidos em situações de grande fragilidade, como a ronda de água, com intervalos de tempo curtos, para prevenir a desidratação ou aliviar o peso do corpo, virando o acamado, várias vezes ao dia, para evitar escaras que podem infectar.
"Os lares ilegais são mal vistos, mas quando tive ordem de fecho, muitos familiares quiseram que eu continuasse a cuidar dos seus idosos"Maria do Carmo Rodrigues - proprietária de lares ilegais em Mouriscas e no Pego
“O importante é se eles comem, se tomam a medicação, se estão lavadinhos de manhã”, diz Maria do Carmo Rodrigues, que em Fevereiro fechou o seu lar em Mouriscas por ordem da Segurança Social, abrindo logo a seguir um no Pego, no mesmo concelho de Abrantes. Para ela, é tudo tão difícil que pondera, "em vez de um lar, abrir um alojamento local".
A residência do Pego, também em Abrantes, é uma alternativa temporária. À sua vivenda, agora fechada em Mouriscas, onde Maria do Carmo diz estar a fazer obras apesar de “ter tudo o que era necessário” para cuidar dos velhotes, primeiro veio a Guarda Nacional Republicana, a Segurança Social, depois a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
Houve uma denúncia, conta enquanto vai pedindo imperiais no café da aldeia onde todos se conhecem. “Há seis anos que estava a funcionar quando recebi a ordem de encerramento. Eu não sabia que tinha de ter uma licença.”
Há uma certa revolta nas palavras de Maria do Carmo Rodrigues quando diz que “a Segurança Social foi um bocadinho arrogante” quando veio, depois de uma denúncia que atribui, embora sem certezas, a familiares de um utente do seu lar, um senhor que tinha anemia e morreu no hospital. "Eu tinha três ou quatro caminhas num quarto e mesmo assim elas implicaram. Tinha dois quartos interiores e um quarto exterior, este sem janelas, e de onde os utentes podiam usar uma casa de banho também no exterior."
"Nunca ninguém se queixou"
"Durante a covid, vinham cá todos: Protecção Civil, Autoridade para as Condições do Trabalho e Segurança Social e nunca me fecharam o lar. Agora estou nas limpezas, a tapar uma parede, a pôr uma porta num quarto, a pôr as barras de ferro nos banhos, nas sanitas”, enumera. “Mais do que as instalações, o importante é serem bem cuidados.” E enfermeira? E médico? “Se eu vir que eles estão mal, eu própria chamo. Tenho uma médica do Centro de Saúde de Abrantes que faz esse biscate. E tinha uma enfermeira para tratar as feridas. Vinha uma vez por semana ou quando era preciso. Eu pago sem recibo. Agora, para ter licença, também querem que eu arranje uma animadora”, diz.
“Quando tive de fechar, tinha muita gente debilitada. Quis entregar as pessoas às famílias, para os colocarem noutros sítios, nos lares das misericórdias, já que os lares ilegais são tão mal vistos. Mas muitos familiares quiseram que eu continuasse a cuidar dos seus idosos. Diziam que preferiam ter a mãe, o pai, a tia ou a avó num lar ilegal, mas onde fossem bem tratados, do que tê-los num lar licenciado onde se calhar seriam mal tratados”, diz. “Nunca os entreguei às famílias, nunca ninguém se queixou."
As denúncias surgem frequentemente de ex-funcionárias descontentes com as precárias condições de trabalho; ou de familiares, quando estes se deparam com alguma situação preocupante envolvendo o idoso.
Nunca aconteceu a Ana Costa ser alvo de uma inspecção, visita da Segurança Social ou denúncia, diz a própria proprietária da empresa Prosas de Outono, que dá nome a dois lares dos quais é directora técnica. Um é misto; o outro só de senhoras acolhe 14 pessoas na localidade de Vale de Milhaços na freguesia de Corroios. Os quartos não cumprem a área determinada por lei para terem três ou quatro camas, nem a entidade tem uma avença com enfermeiro ou animador.
Para Ana Costa, essas são falsas questões. “As pessoas preferem ser bem tratadas em lares ilegais do que maltratadas em lares legais", diz. "Sempre que é preciso, vem o enfermeiro. E as auxiliares têm formação ou ganham experiência com os anos. Para ter um lar de qualidade, o principal é ter uma equipa profissional", continua.
Uma equipa que limpa quando está sujo, que trata quando vê que um idoso não está bem, que sabe monitorizar os sinais vitais, como a tensão arterial, a temperatura, a saturação do oxigénio ou a glicemia, enumera. "Para mim, o principal era que o Estado interviesse nas famílias. Este é um problema da sociedade, porque as famílias nem sempre visitam, nem sempre são vigilantes", considera.
O espaço é limpo, a sala espaçosa e os quartos arrumados e luminosos. A mensalidade oscila entre os 900 e os 1200 euros e ter uma licença custa muito dinheiro, queixa-se. "É preciso um projecto de arquitectura, e projectos para tudo o resto: para as telecomunicações, para a água e os esgotos, para a electricidade. E cada um destes pode custar 5000 euros."
“Estive três anos a viver sozinha desde que o meu marido morreu, e nunca me aconteceu nada. Se tenho que morrer, tanto morro em casa como aqui”Luísa (nome fictício) - utente do Lar Prosas de Outono
Elisabete (nome fictício) é a primeira a falar. Sente-se bem aqui, embora gostasse "muito de voltar para casa". Para isso, não tem remédio. “A minha casa está fechada, em Vale de Figueira” no distrito de Santarém, conta, antes de parar para ouvir nova pergunta. Repete-a, em forma de pergunta à auxiliar: “Que idade tenho?” Tem 86 anos, mas a aparência de uma mulher mais nova e um sorriso de quem leva os dias a pensar como era no passado. “Os meus filhos estão agora a viver no estrangeiro.”
Sentada à sua frente, Luísa, que também não dá o nome verdadeiro, sorri sem convicção. “Não estou bem nem mal. Podia não me doer os pés, não me doer os joelhos, não me doer o corpo. Há três semanas vim do hospital.” Tem 91 anos, e recebe a visita frequente dos filhos. “Eu queria voltar para casa, mas as minhas filhas não me querem sozinha. Eu vivia lá bem, com a bengala, andava, agarrava-me encostada à cómoda, chegava à cozinha e abria a luz”, diz confiante.
"Desde que o meu marido morreu, estive três anos assim e nunca me aconteceu nada. Ele era a minha companhia. Vivíamos felizes. Era só eu e ele. A saudade não tem cura.” Em minutos as lágrimas enchem-lhe os olhos. “Se tenho de morrer, tanto morro em casa como aqui.”
Em Mouriscas, distrito de Santarém, a dona de um lar que todos conhecem grita da janela que há muito tempo a sua casa não tem idosos e recusa abrir a porta. “São só familiares”, diz. “Ela diz sempre isso, que são familiares. Mas estão muitos idosos”, contrapõem pessoas na mercearia em frente que se interrogam sobre os motivos de este lar ainda não ter sido encerrado, apesar de uma ordem de encerramento de vários anos.
A dona, Celestina, diz já ter pago os 20 mil euros da contra-ordenação que herdou do tempo da sua mãe, quando a Segurança Social identificou em 2017 a falta de condições. A intimação na lista dos documentos da Segurança Social fala de “estabelecimento lucrativo”, mas não dá pistas sobre o ponto em que está o processo.
Contactadas pelo PÚBLICO, nem a Segurança Social nem a Procuradoria-Geral da República dizem dispor de dados sobre os proprietários que ficaram impedidos de exercer a actividade desde 2020. A PGR também não tem sistematizada a informação sobre os processos judiciais abertos nos últimos anos por maus-tratos ou negligência em lares. O mesmo acontece com proprietários de lares visados pelo crime de desobediência (por não acatarem a ordem de fecho).
A parte de trás da casa de Celestina, conhecida na aldeia por Titina, dá para um logradouro, umas escadas e uma varanda, onde as ombreiras das janelas estão partidas e o telhado descaído, adivinhando-se a passagem de fortes correntes de ar em dias de maior frio ou vento. Antes de alguém fechar as cortinas por se aperceber de olhares indesejados, da rua é possível ver um velho com a barba por fazer, de pantufas e roupão, que olha pela janela, mas nada diz, sentado numa cama baixa, com pés de madeira, mantas enrodilhadas, no escuro. Desorientado, acabou de acordar ou prepara-se agora para se perder no torpor da sesta e do esquecimento.