Victor Ferreira, in Público online
Renegociação do PRR em Bruxelas “congela” penalização até ao Verão. Governo ganha meses adicionais para transferir centros de saúde em 100 municípios. Reforma já leva três meses de atraso.
Portugal não concluiu a descentralização na saúde dentro do prazo imposto pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas vai evitar uma suspensão parcial do terceiro desembolso, que deveria ser pedido esta sexta-feira. O país tinha de transferir competências para 201 municípios até 31 de Dezembro de 2022, mas tinha até 31 de Março para fazer o pedido de pagamento, tendo, na prática, mais três meses para cumprir essa meta. No entanto, só 92 autarquias assinaram o auto de aceitação de transferência, como confirmou o Ministério da Saúde.
O valor unitário da medida para efeitos do PRR é de 43,2 milhões de euros, montante que tanto pode ser reduzido — já que parte do objectivo está conseguido — como pode ultrapassar os 200 milhões, caso Bruxelas aplique o coeficiente máximo e faça um ajustamento em alta, tal como o previsto pela metodologia que publicou a 21 de Fevereiro deste ano.
Até ao momento, a suspensão parcial foi usada em dois países. A Itália anunciou esta semana que tem um mês para apresentar o contraditório em Bruxelas, que pôs em causa o cumprimento de três objectivos. A Lituânia viu congelada parte do seu mais recente pagamento, por ter falhado dois marcos relativos a matéria fiscal.
Portugal escapa, para já, a este desfecho. Esperar pelo fim do prazo deste terceiro desembolso (2331 milhões de euros, em termos líquidos) teve esta vantagem: como vai negociar, em Maio/Junho, a reprogramação do PRR português, Bruxelas aceitou que o Governo só entregue esse pedido (o mais avultado de todos) no fim dessa negociação. Logo, como não precisa de comprovar que completou a transferência de competências na saúde, o país não será apanhado em falta.
Mas esta reforma não pode ser adiada. A Comissão Europeia só aceita renegociar investimentos, desde que justificados pela inflação ou pela guerra. Ainda assim, Portugal ganha aqui mais tempo, talvez até Julho, até ao fim da reprogramação. Nessa altura, terá inevitavelmente de comprovar que transferiu competências para 190 autarquias. O que implica chegar a acordo com pelo menos mais 100 municípios nos próximos 60/90 dias.
Esse é o número mínimo para escapar a uma suspensão, tendo em conta que Bruxelas não penalizará desvios de até 5%, tal como consta na metodologia comunicada em Fevereiro ao Parlamento Europeu e ao Conselho.
Portanto, o Governo continua a ter uma missão espinhosa. Muitos autarcas dizem-se escaldados com a “má experiência” da transferência na Educação. As autarquias das duas maiores cidades, Lisboa e Porto, têm recusado a herança que agora lhes querem passar na saúde.
O actual ministro que tutela esta área, Manuel Pizarro, admitiu, em Janeiro, que é “justo” e que “faz sentido discutir os recursos que o Estado central vai transferir” com as competências para os municípios. Porém, as críticas de autarcas como Rui Moreira (presidente no Porto) ou Filipe Anacoreta Correia (“vice” em Lisboa) vão além do envelope financeiro.
Moreira aceita que a autarquia tenha um papel importante na saúde, mas recusa uma “mera transferência de tarefas”, em que a câmara se limite “a calafetar janelas dos centros de saúde, a assegurar o transporte de doentes ou a gerir o stock de consumíveis clínicos”. O “número dois” na Câmara de Lisboa, por seu lado, justificava a recusa da transferência da seguinte forma, numa entrevista ao Expresso: “Sentimos que o Estado central está a procurar transferir logística e gestão de património sem transferir nada de relevante na área da saúde.”
Tal como o PÚBLICO escreveu há um ano, a maioria absoluta conquistada pelo PS garantiu condições de aprovação sem sobressaltos das reformas do PRR que têm de passar pelo Parlamento (como as mudanças nas ordens profissionais, por exemplo), mas transferiu os riscos para a rua, para as empresas e para os municípios.
O controlo político em São Bento faria o PRR depender da colaboração dos que, no terreno, têm de executar, até ao fim de 2026, este plano de reformas e investimentos. E, no caso da descentralização na saúde, muitos outros autarcas têm recusado essa colaboração.
Há precisamente um ano, a 1 de Abril de 2022, só 70 autarquias tinham aceitado a transferência na saúde. De então para cá, juntaram-se mais 22, alargando o lote para as 92 actuais. Nos últimos 14 dias, juntaram-se as de Gondomar e mais três. O que demonstra como este processo avança a conta-gotas.
Na quarta-feira, a ministra que manda nos fundos europeus, Mariana Vieira da Silva, confirmou, na comissão parlamentar de Economia, que o terceiro pedido de desembolso só avançará após a reprogramação do PRR.
Portugal quer rever prazos e preços de alguns investimentos, e tem de chegar a acordo com a Comissão Europeia sobre o destino a dar a 1632 milhões de euros de subvenções, que virão como reforço, e também sobre a aplicação de 780 milhões de euros que virão do programa REPowerEU, que responde aos problemas energéticos da UE. Além disso, colocará em cima da mesa um pedido de reforço de empréstimos, que pode andar à volta de mais 2000 milhões de euros, por causa dos custos mais altos de alguns investimentos.
“Estando, neste momento, num momento de reprogramação, será depois dessa reprogramação que faremos o terceiro pedido de desembolso, sempre na perspectiva de melhorar as nossas capacidades de execução e de acertar o que há a acertar”, disse a ministra da Presidência, durante uma audição naquela comissão.
Acrescentou ainda que tenciona colocar esta revisão do PRR em discussão pública, para que haja “um debate alargado” sobre o uso daquelas verbas adicionais e sobre os investimentos que precisam de ser repensados.
O terceiro pedido de desembolso inclui 34 objectivos com apoio a fundo perdido e quatro com apoio por empréstimos. Ao todo, são 18 marcos e 20 metas, entre as quais há outras duas medidas que ficaram por cumprir, além da descentralização da saúde: um projecto relativo à economia do mar nos Açores; e outro relativo a habitação na Madeira.
Quanto custa uma suspensão parcial?
Apenas dois anos depois da entrada em vigor do mecanismo que financia os PRR dos 27 Estados-membros é que a Comissão Europeia definiu uma metodologia para apurar o custo unitário de cada marco e meta e quanto é que vale a suspensão por incumprimento de uma reforma ou investimento. Como tantas vezes acontece nas regras comunitárias, as contas são tudo menos simples e têm uma certa dose de discricionariedade.
No documento COM (2023) 99, o executivo europeu explica que primeiro há que calcular o valor unitário de cada marco ou meta. Essa é a parte fácil. Divide-se o montante total a receber por país pelo número de marcos e metas. Com uma nuance: no caso de países como Portugal, que receberão subvenções e empréstimos, é calculado um valor unitário distinto para marcos/metas associados a subvenções e a empréstimos, mas seguindo sempre a mesma lógica.
No caso português, isso implica dividir o montante de subvenções (13.907 milhões de euros) por 322 marcos/metas. Arredondando, o resultado é 43,2 milhões de euros. Este é o valor unitário de cada marco/meta de Portugal, mas para saber quanto é que será retido se o país falhar algum destes objectivos, é preciso continuar a fazer contas.
Para distinguir investimentos e reformas, e diferenciar os que são mais importantes e exigentes dos que são menos, a Comissão Europeia aplica então coeficientes àquele valor unitário. Nos investimentos, pode-se aplicar um coeficiente de 0,5 (investimentos pequenos) ou de 2 (investimentos maiores). Nas reformas, o coeficiente varia entre 0,5 e 5, dependendo se é um marco/meta intermédio ou final de uma reforma.
Usando o caso português da descentralização da saúde, o valor unitário (43,2 milhões) seria multiplicado por cinco (coeficiente de meta final numa reforma), o que daria 216 milhões de euros. Este seria o valor unitário corrigido. Mas as contas não terminam aqui.
A fórmula ainda inclui um factor de ajustamento e é a partir daqui que a metodologia comunicada pelo executivo comunitário deixa de ser tão claro e parece abrir espaço para decisões mais discricionárias.
O regulamento diz que podem ser feitos ajustamentos para cima ou para baixo em cada valor unitário corrigido.
Há ajustamento para cima (o que fará subir o valor a suspender) se for um investimento de importância maior que tenha servido de fundamento a uma avaliação positiva do PRR por parte da Comissão ou se for uma reforma de grande impacto que esteja ligada às recomendações periódicas que Bruxelas faz aos países para ultrapassar os seus desequilíbrios orçamentais ou económicos.
O ajustamento será feito em baixa se o investimento tiver sido parcialmente cumprido ou se a reforma for de menor importância ou tiver sido levada a cabo em parte. Nessas situações, a Comissão avalia e fará reduções proporcionais no valor unitário corrigido.
Questionada pelo PÚBLICO, a Comissão não esclareceu que factores de ajustamento aplicaria no caso português. Mas dado que já há 90 municípios que aderiram, poderia contar com uma redução proporcional do valor unitário a suspender. Victor Ferreira
A reforma das ordens profissionais ainda não entrou em vigor, mas está aprovada e Bruxelas não deverá levantar obstáculos, no espírito de tolerância dos desvios mínimos.
O PÚBLICO questionou a Comissão Europeia sobre que coeficientes e factores de correcção se aplicam aos valores unitários, mas a entidade recusou explicar esta questão.