Teresa Abecasis , Rodrigo Machado (ilustrações e gráficos, in RR
Isabel foi prisioneira dentro da própria casa. “Ela é a filha que eu nunca tive”, diz uma idosa sobre a cuidadora que lhe ficou com o dinheiro todo. A violência contra idosos é um problema escondido em Portugal: o agressor é, na maior parte das vezes, quem cuida da vítima.
Isabel foi prisioneira dentro da própria casa. Reformada, vivia sozinha e quem costumava cuidar dela era a nora. “Cuidar”. Isto era o que o resto da família pensava, mas a realidade era outra: a nora gritava, insultava-a, desvalorizava-a e, pior que tudo, mantinha a sogra trancada em casa.
Foi preciso Isabel (nome fictício) correr perigo de vida para isto acabar. Um dia, sentiu-se mal, e, sem outra alternativa, gritou por ajuda. Os vizinhos chamaram o INEM, mas só depois de a polícia intervir conseguiram chegar até ela. No hospital é que acabou por revelar o que se passava.
A história de Isabel chegou à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) através de uma vizinha, testemunha da violência que se passava dentro de quatro paredes.
Não há muitos dados sobre a violência contra idosos em Portugal. Os dados da APAV relativos a 2015, recentemente divulgados, mostram uma subida no número de denúncias: no ano passado registaram-se mais de dois casos por dia contra vítimas com mais de 65 anos (977 no ano inteiro, mais 125 do que em 2014). Números alarmantes, que a associação acredita estarem ainda aquém da realidade.
“Temos muitas situações complicadas”, explica Sónia Reis, gestora da Linha de Apoio à Vítima da APAV, mas “acreditamos que há muitas situações ainda por chegar até nós. Haverá, com certeza, muitas cifras negras”.
Perfil da vítima idosa com quem a APAV contactou em 2015. Mas há muitas histórias que continuam escondidas. A violência contra idosos não distingue entre ricos e pobres, habitantes urbanos e rurais
O único estudo feito em Portugal sobre o tema também aponta para valores mais significativos: estima que um em cada dez idosos com mais de 60 anos seja vítima de violência por parte de pessoas conhecidas (12,6%, de acordo com o projecto “Envelhecimento e Violência”, coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, publicado em 2014).
De acordo com estes dados, mais de 300 mil idosos foram vítimas de violência no espaço de um ano, entre Outubro de 2011 e Outubro de 2012.
Entre as vítimas, outro número salta à vista: mais de metade não falou sobre o caso nem apresentou queixa (64,9% das vítimas). E é aqui que a situação fica mais complicada.
Tudo em família
Voltamos à história de Isabel. Chamado pelo serviço social do hospital, o filho foi informado da violência a que a mãe era sujeita. Foi uma surpresa.
“Não queria acreditar no que estava a acontecer”, conta Sónia Reis, da APAV. A mãe nunca tinha dito nada, temia ser mal entendida e que isso afectasse a relação com o filho. Uma possibilidade que ela não queria arriscar, mesmo quando isso significava continuar a sofrer. Quando o pedido de ajuda chegou, já era uma questão de sobrevivência.
Quando há violência contra idosos, quase sempre o agressor está na família. Em quase 60% dos casos, estima o projecto “Envelhecimento e Violência”. E acrescenta que 13,5% das vítimas recusa identificar o agressor, um número que, acreditam os autores do estudo, pode esconder mais familiares.
Dentro da família, em metade dos casos, a violência parte do cônjuge ou companheiro ou dos filhos. Na maior parte dos casos, o idoso, para além de gerir o seu sofrimento, tem de se confrontar com questões afectivas.
Testemunhos de violência na primeira pessoa. Clique para ver com maior dimensão
“A pessoa chega a ter vergonha de dizer que é vítima de violência”, salienta Etelvina Ferreira, directora da Unidade de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade Tejo, da Santa Casa da Misericórdia.
Etelvina já viu muitas histórias de violência contra idosos e analisa o jogo emocional em causa. “Esta é uma idade de pensar muito, de fazer o balanço da vida, e é uma idade para pensar também naquilo que nós fomos. Um idoso, muitas vezes, sente um bocadinho um sentimento de culpa ao pensar que está a ser vítima de violência porque ele próprio não soube cuidar das relações ao longo da vida com os seus descendentes, nomeadamente filhos, ou companheiros”, diz.
Além da vergonha, existe a desvalorização do problema, que reflecte uma desvalorização da própria pessoa. Sónia Reis completa: “É muito difícil para o idoso denunciar, e acaba muitas vezes por ir aguentando. Ou só pedir ajuda no sentido de poder ter algum apoio psicológico para suportar aquela situação, mas dizendo à partida que não pretendem denunciar às autoridades”.
A denúncia é a maneira mais eficaz de desbloquear os vários mecanismos não só de condenação do agressor, mas também de protecção da vítima. Porque é de crimes que estamos a falar e há muitos casos que nunca chegam à justiça. “Não sempre, nem em todas as situações, nem em todas que se pretendia. Mas há casos de agressores que são condenados”, lamenta a responsável da APAV.
A complementar o silêncio das vítimas está um sistema de justiça pouco eficiente nesta matéria. O relatório do projecto “Envelhecimento e Violência” deixa um alerta: “O enquadramento jurídico-legal português não dá uma resposta célere e eficiente a todas as condutas/formas de violência que põem em causa os direitos das pessoas idosas.”
Afectos em troca de dinheiro
Aconteceu num centro de dia da Santa Casa da Misericórdia. Uma idosa que frequentava a instituição ia atrasando o pagamento do serviço sem nenhum motivo que o justificasse. O caso é contado por Etelvina Ferreira: “Fomos percebendo… A senhora dizia: ‘A Maria há-de vir pagar’. Chamo-lhe Maria, mas podia chamar-lhe outro nome qualquer. E percebemos que a Maria era uma cuidadora que a pessoa tinha em casa”.
A pouco e pouco, foram descortinando a gravidade do caso: “Maria” tinha uma procuração que lhe dava acesso à conta bancária da senhora, supostamente para fazer os pagamentos da idosa, mas vinha andando a pagar as suas próprias contas.
A idosa estava falida e consciente da burla, mas mesmo assim recusava-se a denunciar a cuidadora. “Este tipo de violência é muito grave, e despe-nos de tudo o que é nosso. Mas esta senhora dizia-nos: “Não façam nada de mal contra a Maria, porque ela é a filha que eu nunca tive”, recorda Etelvina Ferreira.
As violências financeira e psicológica são as mais frequentes em Portugal e estima-se que afecte 6,3% da população com mais de 60 anos (relatório “Envelhecimento e Violência, 2014). Nas pessoas com idade superior a 76 anos, o risco de ser vítima aumenta 10% por cada ano de idade.
Estes são também os tipos de violência que são mais difíceis de identificar porque não deixam marcas visíveis, ao contrário da violência física.
Estamos a falar de idosos que “não têm poder sobre os seus bens, sobre o seu dinheiro e sobre a sua pensão”, explica Sónia Reis. A denúncia nestes casos parte muitas vezes de terceiros e a intervenção começa por fazer ver ao idoso que se encontra a ser vítima de um crime.
Quais são os sinais de violência financeira e psicológica a que podemos estar atentos?
Um problema de todos
O problema da violência contra idosos não distingue entre ricos e pobres, habitantes urbanos e rurais. “É transversal a todos os estratos sociais, e continua e vai acontecendo em todos eles. Possivelmente, nem todos chegam até nós”, afirma Sónia Reis.
Como combater então um problema que se esconde dentro de quatro paredes? “É preciso continuar a trabalhar para a cidadania e para o facto de que todos, de uma forma natural, chegaremos a essa fase da vida, e temos que começar a prepará-la, e não pensarmos que isto é um assunto que não nos interessa.”
Etelvina Ferreia acrescenta que tem de haver uma sensibilização forte para que as pessoas percebam de que têm a “responsabilidade de cuidar” dos idosos. Família, vizinhos, comunidade, instituições. Todos têm um papel activo na protecção dos mais velhos. E funcionam melhor quando trabalham em conjunto.
Em caso de dúvida numa questão de violência, a Linha de Apoio à Vítima da APAV pode esclarecer: 707 20 00 77.
Ganhar coragem aos 70 anos
Esta história também nos chega sem nome próprio, pela voz de Sónia Reis, gestora da Linha de Apoio à Vítima. Mas deixemos o nome de lado e concentremo-nos na luta de uma mulher de 70 anos, agredida e insultada durante anos e anos pelo marido.
Poderiam ser “só mais uns anos”, como ela chegou a pensar, “até morrer”, porque a única certeza da vida só podia estar cada vez mais perto. A vida ia continuando, e até era uma situação conhecida pelos filhos, que “estavam lá longe nas suas vidas”.
Até que aconteceu aquilo porque ela esperou a vida toda. Alguém chamou a polícia, que chamou a APAV, que finalmente conseguiu mostrar-lhe um outro caminho. E não foi tarde. “Ela percebeu que ali tinha apoio e que podia ser protegida”.
Com novas certezas, foi possível expôr o caso num tribunal. Esta senhora foi a mais velha a ser acolhida numa casa-abrigo para vítimas de violência doméstica. Um caso atípico, que durou dois meses, até ser aplicada uma medida de coacção ao agressor.
Aos 70 anos, esta senhora aprendeu que a vida podia começar e recomeçar quando ela quisesse.