Ana Cristina Pereira, in Público
Femicídio. O termo não é novo. Foi usado pela primeira vez pela socióloga sul-africana Diana Russel em Março de 1976 para falar de mulheres mortas por serem mulheres. O Instituto Europeu da Igualdade de Género (EIGE) recomenda aos Estados-membros que o reconheçam “como uma ofensa criminal específica”.
Aquela agência da UE já tinha definido femicídio e criado um sistema de classificação que extravasa as relações de intimidade, abarcando, por exemplo, homicídios selectivos no contexto de conflitos armados ou associados à misoginia, à “honra”, ao dote, à mutilação genital, à feitiçaria, à identidade de género. Agora, quis perceber as lacunas legais para que a UE melhor possa prevenir e combater este tipo de crime.
Envolvendo a Associação de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, o Instituto de Sociologia Empírica da Universidade de Erlangen-Nuremberg (Alemanha) e a Fundação dos Direitos da Mulher (Malta) e investigadores nacionais, o estudo parte de uma revisão da literatura e faz uma análise comparada de 109 entrevistas a profissionais e a familiares ou amigos próximos de mulheres e meninas mortas em cinco Estados-membros seleccionados: Portugal, Espanha, França, Alemanha e Roménia. São 82 profissionais com tarefas de investigação e julgamento e 27 vítimas ou seus representantes.
Malta e Chipre já têm femicídio na lei
Por esta altura, quer Malta (Junho de 2022), quer o Chipre (Julho de 2022) distinguem o femicídio de outro tipo de homicídios, podendo uma pessoa de qualquer género ser acusada, julgada e condenada por tal crime. Quando o estudo foi feito, nenhum Estado-membro dera tal passo. A agência europeia está disponível para apoiar os que quiserem avançar, entendendo que o termo homicídio “ignora a desigualdade, a opressão e a violência sistemática contra as mulheres”.
No relatório, o femicídio é descrito como “a mais extrema forma de violência de género”. Só em 2020 terão sido mortas pelos seus parceiros íntimos ou por outros membros da família cerca de 47 mil mulheres e meninas, 2600 das quais no continente europeu – 400 na Polónia, 117 na Alemanha, 102 em Itália, 99 na Hungria, 90 em França, 45 em Espanha, 42 na Roménia, 33 nos Países Baixos, na Eslováquia e na República Checa, 31 na Áustria, 30 em Portugal, 27 na Bulgária. Os pais, os irmãos, os filhos ou os amigos das vítimas são outras vítimas, invisíveis.
Perante tais crimes, quase todos os Estados-membros seleccionados acolhem a possibilidade de pena agravada. Portugal, por exemplo, admite-a, quando a vítima é alguém com quem o agressor teve ou tem uma relação de intimidade ou uma pessoa particularmente indefesa em razão da gravidez. Também o faz, quando o acto é motivado por ódio em função do sexo biológico ou da identidade de género.
Apesar disso, a maioria dos profissionais ouvidos julga importante reconhecer o femicídio como um crime autónomo. Argumenta que tornaria o fenómeno mais visível, reforçaria a prevenção, seria uma forma de reconhecer a exposição das mulheres à violência baseada no género, ajudaria a precaver violência doméstica, aumentaria o número de denúncias feitas às forças de segurança.
“Isso iria chamar imediatamente a atenção do intérprete de lei para o facto de estar diante de uma realidade distinta”, comentou um juiz entrevistado em Portugal. “Sou a favor de um tipo autónomo de crime chamado ‘femicídio’, seja por assassinato de mulheres num contexto de violência doméstica, seja por outras formas de violência de género, por exemplo, um homem que viola uma mulher que não conhece e a mata.”
Uma minoria de profissionais, oriunda de França, advogou ser “necessário manter a lei neutra”. “Não estou convencida de que haja uma dimensão de género a ser levada em conta”, disse uma procuradora entrevistada. “Para mim, temos de ter em conta a vítima como ser humano.”
Duas visões dentro da UE
Na prática, a UE divide-se entre uma maioria de Estados que encaravam o femicídio como um homicídio neutro do ponto de vista do género e uma minoria de Estados que o tomam por uma forma extrema de violência de género. Atendendo aos cinco países seleccionados, só Espanha encaixava neste último perfil.
Com aquela moldura, o país vizinho assume uma “abordagem mais abrangente” do que os outros. Ali, “os assassinatos de mulheres são enquadrados no conceito de violência de género e, desde 2004, todos os casos de violência de género, incluindo feminicídios, são investigados, processados e sentenciados por unidades separadas e especializadas” quer nas polícias, quer nos tribunais.
Portugal está um passo atrás. Tem unidades próprias para investigar o crime de violência doméstica na PSP e na GNR e está, desde 2019, a testar secções especializadas integradas no Ministério Público. Os crimes de homicídio, todavia, são uma competência exclusiva da Polícia Judiciária, cujas equipas dedicadas ao crime de homicídio investigam qualquer tipo de homicídio.
Profissionais não só de Espanha, mas também da Alemanha e de Portugal notam a diferença entre o femicídio e outros tipos de homicídio. “Enquanto algumas etapas, como a identificação do agressor, são mais rápidas e fáceis, outros levam mais tempo e requerem análises mais aprofundadas, como a relação entre a vítima e o perpetrador e se a morte foi motivada por género”, lê-se no relatório. Os profissionais ouvidos na Alemanha, em Espanha, em Portugal e na Roménia consideram “que, como os homicídios de mulheres em grande medida têm motivações de género, todos deviam ser investigados como potenciais casos de violência de género”. Seria uma forma de garantir logo à partida a recolha de prova.
Familiares das mulheres mortas como vítimas
A conclusão é: “A falta de uma resposta institucional abrangente não só impede uma prevenção e uma resposta judicial mais eficientes, mas também priva as vítimas do apoio necessário e expõe-nas a vitimização repetida.”
Não faltam exemplos de queixas ignoradas e associadas a desfechos trágicos. “Tanto os profissionais quanto as vítimas consideram crucial a intervenção precoce em casos de violência doméstica, a rigorosa avaliação e gestão de riscos, o apoio e a protecção legal.” E observam como os Estados “falham na prevenção, ao ignorar ou subestimar factores de risco”, como ameaças de morte, episódios anteriores de violência doméstica, acesso ou uso de armas de fogo, uma nova relação amorosa, perseguição.
O papel desempenhado pelas vítimas nos processos varia. Na Alemanha, em França, em Portugal e na Roménia podem constituir-se como assistentes. Em Espanha, são consideradas testemunhas qualificadas. Aos familiares das pessoas mortas, porém, não é reconhecido estatuto de vítima.
O tribunal surge como um lugar desagradável ou mesmo inóspito. Nas entrevistas das vítimas, repetem-se lamentos sobre falta de sensibilidade dos magistrados, as suas atitudes de humilhação e culpabilização das vítimas. “Você sabe, este foi um adultério clássico, a sua filha era ambivalente”, disse um juiz a um homem em França. “Este acto é imperdoável, mas compreensível”, disse ao réu. “E isso é uma declaração tão misógina e discriminatória em relação à minha filha”, indigna-se. “Ela está morta e ele diz que é adultério clássico.”
A maior parte dos profissionais reconhece que a vitimização secundária não é evitada e a maior parte das vítimas revela que a sentiu na pele. Quando informações pormenorizadas são discutidas, não há o cuidado de as avisar para que possam sair da sala. Uma das vítimas entrevistadas em Portugal relatou que, “após alguns dias a assistir ao julgamento, sentiu depressão e, a longo prazo, outros problemas de saúde”.
No meio destes processos, muitas vezes há crianças. Em Espanha, prestam testemunho em espaços específicos, sobretudo em modo de declaração para memória futura. O plano contra a violência reconhece as crianças como vítimas directas e prevê medidas específicas para filhos de mulheres assassinadas – pensões, apoio psicológico, bolsas de estudo, ajuda económica e habitacional.
Em Portugal, as crianças são ouvidas, se o seu testemunho for considerado essencial. As que assistem a situações de violência doméstica têm, desde 2021, direito a estatuto de vítima. Afiançam os entrevistados que, “dado que a lei não é clara”, em caso de femicídio, nem sempre o estatuto lhes é atribuído. A Resposta de Apoio Psicológico para Crianças e Jovens Vítimas de Violência Doméstica também é recente (2021).
Os profissionais ouvidos nos cinco países reconhecem o valor do apoio de longo prazo. E defendem que há que “melhorar a troca de informações para garantir que a custódia das crianças é resolvida e a responsabilidade parental fica suspensa, quando o pai é suspeito de matar a mãe”.
Em Portugal, na Alemanha e na Roménia, “morrendo um dos pais, o outro fica automaticamente com a custódia”. Havendo um femicídio, o tribunal de família tem de decidir quem assumirá a responsabilidade. Por falta de coordenação entre tribunais criminais e de família, há crianças que “são obrigadas a visitar o pai na prisão, porque este ainda não foi condenado”. Em Portugal, explicou um entrevistado, “em caso de violência doméstica, a inibição da responsabilidade parental é aplicada automaticamente, mas isso não é legalmente definido em casos de femicídio”. Em França é automática, embora temporária, o que significa que a sentença deve ser revista após seis meses.
“Para melhorar as suas respostas institucionais, os Estados-membros devem garantir que o femicídio é reconhecido como uma forma extrema de violência de género”, recomenda o EIGE. Nesse sentido, devem “incluí-lo nas políticas e estratégias nacionais sobre violência contra as mulheres e desenvolver medidas específicas”. E, entre outras coisas, disponibilizar formação obrigatória regular para polícias e magistrados, melhorar a coordenação interinstitucional, ter estatísticas actualizadas, “fornecer informações e recursos financeiros adequados para que haja indemnizações – seja por parte do perpetrador ou do Estado – de fácil acesso para os membros da família afectados por feminicídio, em particular as crianças órfãs”. A reparação sabe a pouco.