27.3.23

Há mais de 26 mil famílias à espera de habitação social

Texto  Raquel Moleiro, Foto António Pedro Ferreira, in Expresso

Rendas inflacionadas e despejos aumentam pedidos de casas às autarquias da Grande Lisboa e Grande Porto. Só há vagas para 2,5% dos candidatos

Ir pedir casa à câmara é o último recurso. O fim da linha. Depois de feitas todas as contas, somadas as despesas, subtraídas ao rendimento disponível, o resultado não chega para pagar uma habitação no mercado de arrendamento comercial. Mais de 26 mil famílias a residir nas áreas metropolitanas de Lisboa (AML) e do Porto (AMP) não encontram forma de encaixar nesta contabilidade ao cêntimo o aluguer inflacionado de um imóvel e manter o orçamento familiar acima do negativo. E quando têm casa, basta uma subida, pequena que seja, na prestação ou no aluguer, uma cessação de contrato, ou um despedimento, uma doença, um filho não programado, a conta do supermercado engordada pela guerra, para que tudo se desequilibre para lá da recuperação. Porque não há sobra onde ir buscar. Resta-lhes candidatarem-se, no concelho onde residem, a uma habitação municipal, de renda controlada ajustada ao vencimento. E esperar. Podem ser anos. Atualmente só há vagas para 2,5% dos inscritos.

A crise da habitação juntou-se à crise económica e criou a tempestade perfeita para abalar a estrutura das famílias mais carenciadas, as primeiras a chegar à lista de espera e as que ocupam os lugares cimeiros. De acordo com os dados recolhidos pelo Expresso junto de 31 autarquias da Grande Lisboa e do Grande Porto — três não responderam — há atualmente 26.312 agregados à espera de vagas sociais, quase 19 mil na região da capital e cerca de 7400 na área da Invicta. A maioria dos pedidos (15.884, o equivalente a 60%) deu entrada ou foi renovada em 2022.

Seria preciso aumentar em mais de um terço o número de imóveis municipais na AML e AMP — são mais de 73 mil — para dar a todos um teto. A capacidade de resposta atual está, porém, muito longe dessa realidade. Para entrega imediata, existiam no final de 2022 apenas 658 casas, 471 na Grande Lisboa e 187 no Grande Porto, o que permite satisfazer 2,5% dos pedidos em lista de espera. Na área da capital, 13 dos 18 concelhos — Almada, Amadora, Barreiro, Loures, Mafra, Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Sintra, Sesimbra, Setúbal e Vila Franca de Xira — não tinham, nessa data, qualquer vaga disponível, o mesmo sucedendo a norte, com Arouca, Maia, Paredes e Vila Nova de Gaia.


Estão identificadas mais 2509 habitações municipais desocupadas, mas necessitam de obras para acolher novos inquilinos. Em 2022, só 913 famílias (3,4% das candidaturas) receberam uma chave da câmara. Barreiro, Cascais, Moita, Palmela, Vila Franca de Xira e Arouca não entregaram nenhuma. A este ritmo seriam precisos 29 anos para acabar com a espera, e só se se travassem novas inscrições.

Na generalidade dos concelhos, a atribuição dos imóveis sociais é feita com base numa classificação por pontos, que soma critérios de risco, carência ou exclusão — número de filhos, desemprego, rendimento, deficiências, problemas de saúde, casa degradada, ordem de despejo... —, só havendo atualmente resposta para os casos mais graves dos mais graves.

QUARTOS, ANEXOS E ARRECADAÇÕES

A maioria destes sem-casa não são, porém, sem-abrigo. São famílias monoparentais ou alargadas que suportam a espera enfiados em quartos, na casa de parentes, em imóveis insalubres ou ocupados, num T0 para cinco, num anexo abarracado, numa garagem. Muitos trabalham, revelam os dados de algumas autarquias, mas o salário é insuficiente para conseguirem suportar uma solução habitacional digna.

Diana Alvelos, 34 anos, e o filho Wilson, de 16, viveram os últimos dois anos e meio na arrecadação interior de um prédio, a pagar 100 euros de aluguer, sem luz ou água, sem casa de banho ou cozinha. Foi a última solução depois de várias outras precárias, desde anexos a quartos e pensões. Ela tem dois empregos fixos, é empregada de mesa num hotel e funcionária de uma empresa de limpezas, e está a tirar o 12º ano. Em janeiro receberam da Câmara de Cascais uma casa municipal, 15 anos depois da primeira candidatura (ver texto ao lado).

O problema é maior na área metropolitana da capital, que concentra 71% dos agregados em espera por uma habitação. Lisboa, Cascais, Oeiras, Loures e Sintra são as autarquias com os números superiores, entre o recorde de 7093 famílias em Lisboa e as 1132 em Sintra. A norte, Matosinhos lidera com 1593 pedidos, seguido de Maia, Vila Nova de Gaia e Porto.

Mas a pressão não se fica pelos concelhos mais povoados. Com a fuga de população para as localidades limítrofes da AML, atrás de rendas comportáveis, a especulação imobiliária seguiu-a, aproveitando a procura. E assim, municípios com pouca habitação social — porque nunca tiveram pedidos que motivasse a sua construção ou aquisição — veem-se agora a braços com listas de espera, algumas até superiores ao património edificado e totalmente lotado. É o caso de Alcochete, Palmela, Mafra e Sesimbra. Na AMP, o mesmo acontece com Arouca, Paredes e Oliveira de Azeméis.

Nas questões enviadas a cada câmara municipal foram pedidas as razões alegadas por quem pede casa e, uma a uma, confirmam o efeito da crise da habitação no tecido social. Só muda a formulação. Alcochete e Sintra apontam o “aumento das rendas e despejos”, Amadora, Seixal e Espinho falam em “dificuldades económicas para fazer face ao pagamento mensal da renda e às despesas fixas”, Barreiro, Montijo, Oeiras e Maia referem o “despejo por falta de pagamento e incapacidade financeira para manter a atual habitação em consequência do aumento da renda”, Loures, Odivelas, Gondomar, Paredes e Porto indicam a “insuficiência económica para suportar os custos da casa e acederem ou manterem-se no mercado privado de arrendamento”, Setúbal destaca a “especulação dos preços da habitação” e a “escassez de casas para arrendar”, Sesimbra indica o “aumento do valor da renda praticada no concelho”, Vila Franca destaca a “carência financeira devido ao valor elevado de renda”, Matosinhos e Gaia dão ênfase ao “despejo por cessação de contrato”. Rendas é a palavra mais repetida, despejos e penhoras não ficam atrás.

Para a maioria das autarquias a solução para a falta de habitação social passa pelos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que financiará a corrida à construção de novas habitações municipais — bairros e prédios dispersos —, a aquisição para reabilitação e a reabilitação de imóveis públicos. A meta é “a criação de 26 mil novos fogos para famílias que vivem em situação carenciada e que não têm acesso a habitação condigna” e o reforço da habitação acessível para jovens e famílias da classe média.

TRÊS ANOS DE OBRAS

Na Câmara Municipal de Lisboa, Filipa Roseta, vereadora da habitação, tem cerca de 400 milhões de euros para aplicar. O problema é grande. O Programa de Arrendamento Apoiado, dirigido aos agregados em maior privação, tem uma lista de espera de 7093 candidaturas — a maior da AML e AMP —, já limpa dos pedidos inválidos, mas as casas vagas no imediato passam pouco das 400. E os pedidos não param de aumentar, revela o gabinete. Em janeiro de 2023 foram submetidos 1540, mais do dobro do que em janeiro de 2022. Em fevereiro receberam 975, mais 346 do que no período homólogo. A estes números somam-se ainda as famílias que se inscrevem para o Programa de Renda Acessível, com uma média de 3485 em cada concurso, e as 800 candidaturas ao Subsídio Municipal de Arrendamento Acessível, que estiveram abertas até 28 de fevereiro — na edição anterior tinham sido 492.

Entre outras medidas, a Carta Municipal de Habitação, apresentada por Roseta no início deste mês, prevê a requalificação de bairros sociais “esquecidos”, onde foram identificadas 13.150 situações de habitação indigna; a construção de mais 9624 fogos de habitação municipal, sendo que atualmente 930 estão em obra, 1721 em projeto e 5967 em estudo; o regresso das cooperativas — estão programados cinco concursos até ao fim do ano; e a compra de imóveis devolutos da cidade.

Os restantes municípios do top 10 com mais pedidos de habitação social (ver gráfico) estão também a disparar medidas para aumentar o número de casas sociais disponíveis. Cascais quer assegurar fogos para mais 4085 famílias (10.212 pessoas). Oeiras avança com 691 novas habitações. Matosinhos prevê 512 novos imóveis. Loures planeia realojar famílias de bairros de barracas em 850 novos fogos. Setúbal vai reabilitar todo o parque municipal e ampliá-lo. A Maia arranca já com a construção de 757 imóveis. Sintra projeta soluções para 3100 famílias. O Porto, que já tem 13% do edificado da cidade — a média nacional é 2% — aposta no arrendamento acessível e quer cativar os promotores imobiliá­rios para contratos-promessa de aluguer, quando as habitações estão ainda em projeto ou construção. O objetivo é angariar mil novos fogos.

O prazo, para quase todos os empreendimentos municipais, é o fim de 2025, quando têm de estar executados os fundos do PRR. Para a maio­ria das famílias em lista de espera, a casa está ainda a quase três anos de distância.

DE TERRA EM TERRA

● Alcochete só tem 51 casas municipais, todas lotadas, mas está a braços com uma lista de 260 famílias a precisar de habitação. Em 2022 entraram mais 65% de novos pedidos do que em 2016. Nesses sete anos foram atribuídos oito imóveis. A autarquia vai alargar a oferta de habitação municipal para arrendamento apoiado e arrendar habitações para subarrendamento.

● No fim de 2022, a Amadora acumulava 879 pedidos, o quádruplo das entradas em 2016. E a subida acelerou em 2023. Até 21 de março a plataforma municipal listava 399 candidaturas, com uma média diária de cinco entradas, mais do dobro do registado no ano passado, em que só 12% teve direito a chave. A realidade fica mais negra quando se juntam a estes números mais 998 famílias a viver em bairros precários, cuja erradicação é a prioridade da Estratégia Local de Habitação.

● As 274 famílias em lista de espera para ter casa em Almada dão uma falsa sensação de descida da procura de habitação social na autarquia de Inês de Medeiros. Estas são apenas as candidaturas aceites e publicadas. Os pedidos entrados desde 2020 ascendem a 2295, já subtraídas as 221 casas atribuídas até ao fim de fevereiro de 2023.

● Arouca não entrega casas municipais desde 2016, quando duas vagaram e foram prontamente ocupadas. A lista atual vai em 38 famílias, um número aparentemente baixo, mas que ultrapassa já a totalidade dos 24 fogos municipais existentes.

● Palmela não tem lista de espera, o que não significa que não haja procura. O modelo de atribuição atual não as contempla. “As necessidades pontuais tinham resposta na Rede Social Local”, explica o gabinete da presidência da Câmara. O recente quadro de crescente necessidade habitacional obrigou a alterações. Encontram-se em processo de aquisição e reabilitação 101 casas e a construção de 62, a disponibilizar até 2026.

● Paredes tinha de duplicar o número de casas municipais e ainda assim não conseguia alojar todas as 396 famílias que lhe bateram à porta a pedir um teto de renda acessível. Tanto mais que não tem atualmente qualquer imóvel livre. Está em curso a construção de mais 26 fogos, mas não será suficiente.

● O Porto atribuem-se em média 300 habitações por ano, e o tempo de espera varia entre um e três anos. Na generalidade dos casos, explica a autarquia, os candidatos não aceitam a primeira proposta “porque preferem aguardar por disponibilidade noutro local ou porque a habitação apresenta condicionalismos por situação de doença”.

● Em dez anos, o número de pedidos de casa que chegaram à Câmara do Seixal quase quadruplicou, de 166 para 632 no final de 2022. A prioridade nas atribuições foi dada aos moradores de Vale de Chícharos, o famoso bairro Jamaica. Em 2018 e 2022 foi possível realojar 101 famílias das torres inacabadas.