27.3.23

Qual é a diferença entre pedofilia e abusos sexuais de menores? O que distingue um abusador de um pedófilo?

Cristiana Faria Moreira, in Público

Pedofilia e abuso sexual de menores não são sinónimos. A maioria dos abusadores de menores não é pedófila. “A pedofilia é uma patologia, que não determina forçosamente o crime”, diz psiquiatra.

O que é a pedofilia?

A pedofilia é uma perturbação parafílica, que se caracteriza por um "desejo quase absoluto, ou mesmo absoluto, relativamente a crianças ou jovens". Ou seja, o objecto do desejo da pessoa com essa perturbação recai sobre crianças e jovens, de forma repetitiva e intensa. "O que acontece na maior parte das vezes é que essas pessoas sofrem com esta sua situação. Por vezes há a procura de matéria, da pornografia até abusos formalizados, como consequência dessa alteração do desejo", explica a psiquiatra Ana Matos Pires. É uma perturbação que está classificada nos instrumentos classificativos internacionais da doença mental, acrescenta ainda.

Isso quer dizer que uma pessoa pedófila é um abusador?

Não. “A maioria dos abusadores não são pedófilos”, nota a psiquiatra, que dá como exemplo o facto de o crime de abuso sexual de menores ser cometido, com maior prevalência, contra meninas, e na maior parte das vezes por familiares próximos, onde se incluem pais e tios. "Essas pessoas são casadas, têm o seu desejo afectivo ou sexual por pessoas crescidas e isso não quer dizer que não cometam este crime por maldade", refere.

E um abusador sexual de crianças e jovens é um pedófilo?

Uns sim, outros não. "A maior parte dos abusadores não têm características de perturbação pedoebofílica [normalmente designada por pedofilia]", reforça a psiquiatra, já que o seu objecto primário de desejo não é a criança ou o adolescente. "É fazer mal, é o acto de violar."

"Uma pessoa condenada por abuso sexual pode ser pedófila ou não pedófila, pode ser deprimida ou não deprimida, pode ser ansiosa ou não ansiosa. O abuso sexual de menores não é uma doença, é um crime", observa Ana Matos Pires.

Um pedófilo pode nunca vir a abusar sexualmente de alguém?

Certo. Os pedófilos são uma pequena minoria no universo dos abusadores sexuais de menores. A psiquiatra Ana Matos Pires reforça que a pedofilia é uma patologia, que não determina forçosamente o crime, e que a maior parte dos abusadores nem sequer tem este tipo de patologia.

Há algum perfil comportamental entre aqueles que têm esta doença diagnosticada?

Não. A principal característica, diz Ana Matos Pires, é o "impulso, que é ética e moralmente desadequado", por crianças, geralmente pré-púberes, ou seja, com idade inferior a 13 anos. "São pessoas exactamente iguais. Não há nenhuma característica diferente", nota.

Há mais pedófilos homens ou mulheres?

Embora homens e mulheres possam padecer desta perturbação, tem mais prevalência entre os homens.

E há algum tratamento para esta perturbação?

A psiquiatra Ana Matos Pires fala antes de prevenção. Neste momento, está a decorrer um estudo no país, destinado a pessoas que "estão preocupadas acerca dos seus impulsos sexuais em relação a crianças e que querem receber ajuda online de forma anónima". É um projecto, que se designa por Prevent It, financiado pela União Europeia, e pretende "avaliar uma nova forma de ajudar as pessoas a reduzirem os seus impulsos para agir sexualmente em relação a crianças", seja no consumo de pornografia infantil, seja no envolvimento com crianças online ou presencialmente. Será uma "intervenção cognitivo-comportamental baseada na Internet e assistida por terapeutas", explica o site do projecto.

Em relação aos abusadores, há algum comportamento padrão de quem comete este tipo de crime?

Não, afirma a psiquiatra. "São pessoas que têm traços psicopáticos. Mas não está escrito na testa, não há um comportamento a ter. Muitas vezes, são pessoas muito bem integradas socialmente e com poder", refere.

O que prevê a lei para o crime de abusos sexuais de menores?

Este crime é punido com uma pena de prisão de um a oito anos, "desde que exista a prática de um acto sexual de relevo com um menor de 14 anos". No entanto, pode ser aumentada para uma pena de prisão de três a dez anos, "se estes actos sexuais consistirem em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos", explica o advogado Miguel Matias, que representou os jovens da Casa Pia, no processo ligado aos abusos sexuais.

As penas, refere ainda o advogado, podem ser agravadas "num terço se estivermos perante pessoas que tenham obrigação de cuidar [das vítimas], como os progenitores, a família, os professores, os padres quando, por exemplo, as crianças estão entregues ao cuidado da Igreja, como nos seminários". Assim como se as vítimas forem pessoas com maior "vulnerabilidade" por razões de saúde ou deficiência.

No caso de actos sexuais com adolescentes, entre os 14 e os 16 anos, a pena de prisão pode ir até dois ou três anos, consoante o tipo de acto. Em todos estes casos, a lei prevê que a tentativa de abuso seja também punível.

Qual é a data de prescrição destes crimes?​

A lei prevê que a prescrição dos crimes sexuais praticados sobre menores fique suspensa até a vítima ter 23 anos.​ "Consoante a moldura penal do crime, esta prescrição pode ser um caso concreto de dez ou de 15 anos, sendo que ela só começa a partir do momento em que a vítima faça os 23 anos", enquadra Miguel Matias. No entanto, explica, "tem sido entendido que este prazo prescricional deveria ser iniciado mais tarde e também alargado nos seus limites máximos", para dar mais tempo à vítima para denunciar. Isto porque, pelas características deste crime, e até pela relação que as vítimas têm, por vezes, com o agressor, acabam por estar "inibidas de denunciar. Pelo medo, pela vergonha, pela culpa, pelos danos físicos, por tudo isso", observa.

O Governo já se comprometeu a prosseguir com o processo legislativo necessário para a revisão do prazo de prescrição de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual contra crianças. De acordo com a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, esta alteração legislativa relativa às prescrições deste tipo de crime deverá incidir sobre o momento em que começa a contar o prazo de prescrição. Mas tal está ainda em estudo.

"É uma questão política, que ultrapassa os operadores judiciários, os técnicos de saúde mental, cuidadores, todas as pessoas que se dedicam a este tema. É essencialmente dependente de uma vontade política", nota o advogado.

Existe uma lista em Portugal que registe condenados por crimes de abusos sexuais de menores?

Sim. Em 2015, foi criado o "sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores", no qual constam dados pessoais e dos condenados por crimes sexuais em que a vítima é menor de idade. Na altura, a então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, invocou a elevada taxa de reincidência nos crimes de abuso sexual de menores para justificar a criação da base de dados. Nessa lista, constam os nomes, assim como outros dados pessoais, de cerca de 6500 pessoas condenadas por crimes sexuais contra crianças. Os dados são mantidos no sistema entre cinco a 20 anos, consoante a pena aplicada a cada abusador.

Como funciona essa lista? E é regulado o seu acesso?

Este registo criminal está acessível apenas a magistrados e entidades policiais para fins de investigação criminal, à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e às comissões de Protecção das Crianças e Jovens.

"Não temos todos o acesso a esta lista – e bem – porque estamos a falar também na protecção de um conjunto de direitos dos próprios arguidos. Mas todo o sistema judicial e policial de investigação tem acesso", refere Miguel Matias. "Pode ser também solicitado ao Ministério Público por instituições que pretendam contratar pessoas que tenham de privar com menores a indicação se determinada pessoa pode ou não ser contratada", acrescenta o advogado. No ano passado, foram introduzidos no registo os dados de 350 pessoas condenadas por abuso sexual de crianças.