Clara Viana, in Público
Novo estudo sobre endogamia académica dá conta de que existem faculdades onde o peso dos seus professores que ali se doutoraram ronda os 100%.
As universidades portuguesas continuam a comportar-se como as famílias que dificilmente aceitam a entrada de estranhos, vivendo fechadas sobre si próprias. Pelo menos, é o que mostram os dados agora revelados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) no estudo Indicadores de Endogamia Académica nas Instituições Públicas de Ensino Universitário, e que se podem resumir assim: “A maioria de docentes doutorados que ocupam posições de carreira nas universidades públicas doutorou-se na mesma instituição de ensino superior em que lecciona (68%).”
O que quer dizer que em seis anos a situação pouco se alterou, já que em 2015/2016, ano a que reporta o estudo anterior da DGEEC sobre endogamia académica, aquela percentagem estava nos 70%. Este último estudo foi divulgado em 2017.
Na altura, o PÚBLICO sintetizava os resultados então apurados deste modo: “Quem já lá está, é quem fica.” Um resumo que continua a servir como uma luva à situação retratada pela DGEEC a partir da informação reportada pelas instituições universitárias no Inquérito ao Emprego no Ensino Superior Público (IEESP), referente ao ano lectivo 2021/2022. Estes dados dizem apenas respeito às universidades públicas. Só foram tidos em conta os professores de carreira (catedráticos, associados e auxiliares).
Apurar qual é o peso dos professores que leccionam na mesma instituição em que se doutoraram é a forma mais corrente utilizada nos estudos que pretendem avaliar qual o grau de endogamia académica no ensino superior. Este é um conceito que se refere, tipicamente, a situações de imobilidade profissional em que um docente do ensino superior desenvolve a sua actividade de investigação e docência na mesma instituição de ensino em que recebeu a sua formação académica original, "sem que, de permeio, tenha tido posições com duração significativa em entidades externas”, conforme descrito pela DGEEC no seu primeiro estudo e que continua a ser assim caracterizado nas análises internacionais sobre este fenómeno.
Coimbra à frente na endogamia
Comparando os resultados obtidos em 2015/2016 e 2021/2022 constata-se que são as mesmas universidades e faculdades que se destacam por este “fechamento”. Nos resultados institucionais, a Universidade de Coimbra é a que continua a ter “a percentagem mais elevada de docentes de carreira que realizaram o seu doutoramento na própria instituição (78%)”. Em 2015/2016, eram 80%.
Seguem-se a Universidade de Lisboa, que apresenta um acréscimo de 74% para 75%, e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, que apresenta, neste campo, o mesmo valor nos dois anos em análise: 73%.
O mesmo se passa com a Universidade do Porto, que repete o quarto lugar nesta lista com 72% de professores mantendo-se na casa em que se doutoraram. Coimbra, Lisboa e Porto são as universidades mais antigas de Portugal, o que confirma um dos traços característicos registados nos países onde a endogamia académica é mais forte.
Este fenómeno deriva de uma deturpação do espírito subjacente aos concursos para lugares académicos. É que, apesar de estes procedimentos terem de ser abertos a todos que cumpram os requisitos, “os candidatos internos à instituição prevalecem sistematicamente” sobre os de fora, constata a DGEEC. O que isto quer dizer também é que a escolha em função apenas do mérito acaba por ser fortemente penalizada.
Analisando por unidade orgânica, verifica-se que o nível de endogamia atinge proporções assustadoras em algumas faculdades. Nas faculdades de Direito das universidades de Coimbra e de Lisboa, por exemplo, a proporção de professores de carreira que ali davam aulas em 2021/2022 e que ali se tinham doutorado chega ao 100% e 99%, respectivamente, precisamente os mesmos valores registados há seis anos e que eram assim traduzidos pela DGEEC: “Em particular, isto significa que, nos concursos abertos para posições académicas nestas faculdades, praticamente nunca foi seleccionado um candidato doutorado fora da instituição.”
No conjunto, são pelo menos dez as faculdades que apresentam níveis de endogamia iguais ou superiores a 90%. Apenas alguns exemplos: Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (99%), Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa (99%), Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (98%).
É o contrário do que se passa, por exemplo, “nos departamentos universitários norte-americanos, que possuem apenas cerca de 15% de docentes formados na universidade onde exercem funções", ilustrou o professor do Instituto Superior Técnico Paulo Ferreira num artigo que escreveu para o PÚBLICO.
Inovação comprometida
Do mesmo modo que a endogamia tem efeitos prejudiciais nas espécies, também a sua prevalência no ensino superior “produz efeitos negativos para as instituições ao nível da qualidade da produção científica, da inovação, da criatividade e da estrutura organizacional”, alertou a investigadora Orlanda Tavares, autora de um dos primeiros estudos sobre o fenómeno em Portugal.
Paulo Ferreira deu também conta deste prejuízo, alertando para o seguinte: “Uma das consequências nefastas da endogamia dos quadros universitários é a criação de grupos de pensamento homogéneos, sem a independência intelectual adequada (…), numa esfera reduzida de possibilidades, particularmente nos casos onde os docentes de um departamento descendem academicamente uns dos outros.”
Para o investigador Hugo Horta, que tem analisado o fenómeno, uma das soluções para este quadro passa por “processos de recrutamento académicos transparentes, claros, públicos e com regras que não sejam alteradas em qualquer altura do processo e não sejam muito pesadas em termos de burocracia”.
Mas, por cá, a avaliar pelo novo estudo da DGEEC, os sinais de mudança continuam a ser escassos. Há uma evolução na proporção de docentes de carreira que obtiveram o seu doutoramento numa instituição de ensino superior portuguesa diferente daquela em que trabalham: de 10% em 2015/2016 para 14% em 2021/2022.
Já o valor dos docentes que realizaram o seu doutoramento no estrangeiro (19%) mantém-se igual. A Universidade do Algarve (27%) e o ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (25%) continuam à frente neste grupo.