As “negas” sucessivas – por causa da sua etnia, garante – acabaram quando o hotel onde tinha trabalhado lhe reabriu as portas. Saíra em 2018 para cuidar de um bebé abandonado que acolheu como filho.
Lurdes Dias diz que é “toda Guimarães”, desde o amor pela cidade ao clube de futebol mais representativo do concelho, o Vitória Sport Clube. E desata às gargalhadas quando confessa que nasceu na cidade rival, Braga. Esse “acidente” biográfico aconteceu em Janeiro de 1970, quando a mãe tinha ido visitar um familiar e já só saiu da capital do Minho com uma menina nos braços.
É muito assim, franca, directa e bem-disposta, esta mãe de quatro filhos, dois biológicos e dois “do coração” (adoptados), que esteve mais de dois anos em busca de trabalho e a levar “negas” sucessivas até voltar aonde já se tinha sido dado bem. Após a recuperação do sector hoteleiro da fase aguda provocada pela pandemia de covid-19, voltou a ser chamada, em Agosto passado, pelo hotel onde já tinha trabalhado como camareira entre 2014 e 2018.
Lurdes, de 53 anos, esteve enquadrada no conceito de desempregada de longa duração – para o Estado, desempregados de longa duração são as pessoas que se encontrem inscritas no Instituto do Emprego e Formação Profissional há 12 meses ou mais. Aliás, a vimaranense até poderia ser incluída noutra denominação mais recente: desempregados de muito longa duração, que engloba os desempregados com idade igual ou superior a 45 anos, e inscritos no centro de emprego há 25 meses ou mais.
No seu caso, foi importante o apoio do projecto Estação Guimarães Norte, uma iniciativa de intervenção social com o objectivo de capacitar e apoiar os grupos sociais mais vulneráveis no acesso e na integração no mercado de trabalho. Este projecto corre dentro da Fraterna – Centro Comunitário de Solidariedade e Integração Social, sediada na cidade berço.
“Não encontrava trabalho por ser cigana”, dispara Lurdes Dias, casada, com o companheiro de há 30 anos, desde o dia 1 de Junho de 2018. “A família do meu homem não é cigana e sempre me tratou muito bem”, acrescenta. A questão da etnia tem sido um obstáculo, às vezes intransponível, na vida de Lurdes. A família dela não aceitou muito bem, mas, “passado um ano” de alguma resistência, já estava de volta ao convívio com os pais e irmãos. “O meu homem não convive tanto com a minha família, mas em festas ou outras ocasiões [importantes] está sempre presente, como quando algum familiar está no hospital, ou assim”, comenta.
A questão do hospital veio forçosamente das marcas ainda muito fortes da perda recente da mãe, que morreu há dois meses. “O meu homem aceita muito bem os meus rituais e eu os dele. Sou evangélica cristã, ele é católico, mas não se importa que eu faça o luto [mais prolongado]. Para nós, pode ir até um ano. Eu entendo que devo respeitar as crenças dele e que devo fazer o luto pela minha mãe até Agosto, quando fizer seis meses que morreu. Disse-lhe que, se ele quisesse, podíamos abrir a porta ao compasso na Páscoa, mas não quis. Acho que já não liga muito à religião”, explica-se.
“Uma pessoa como as outras”
A questão familiar foi o primeiro de muitos grandes obstáculos sociais que Lurdes teve de ultrapassar durante a vida, desde assuntos mais pessoais até ao tratamento que lhe tem sido reservado pela sociedade, em geral. Ser cigana, diz, não é um cartaz: “Sou uma pessoa como as outras.”
A trabalhar novamente no hotel do centro histórico de Guimarães do qual saiu em 2018, para ser mãe pela quarta vez, esta vimaranense desfia um rol de situações em que se sentiu discriminada no acesso ao mercado de trabalho devido à sua etnia.
“Antes do hotel, tinha tirado um curso de Auxiliar de Acção Educativa e arranjei trabalho numa creche, mas as mães diziam-me que as crianças tinham medo de mim, por ser cigana. Mas as crianças não sabiam que eu era cigana, eram as mães que lhes diziam”, comenta. “As crianças adoravam-me e eu a elas, e tínhamos uma relação excelente”, junta.
“Estive lá quatro meses, mas depois tinha de andar escondida [das mães] e isso para mim não dava. Vim-me embora”, atalha, decidida.
A unidade hoteleira abriu-lhe as portas do trabalho duas vezes, a primeira em 2014. “Estavam a contratar camareiras. Fui lá, gostaram muito do meu trabalho e fiquei efectiva”, conta Lurdes.
Quatro anos depois, nasceu Adolfo Júnior, numa família vizinha de Lurdes com remotas ligações familiares. “Elas [mãe e avó] esqueceram-se do menino. Eu não o podia deixar na rua e aos dois meses foi viver comigo. Tive de deixar o hotel para tomar conta dele”, recorda.
“Ele” é “o Júnior”, hoje com quatro anos e filho mais novo de Lurdes e do marido, que conceberam biologicamente “uma rapariga de 28 anos e um rapaz de 23” e há uns anos já tinham adoptado o Samuel, agora com 15, e que tem problemas emocionais e psicológicos que parecem estar a ser finalmente bem diagnosticados.
“Uns médicos diziam que é hiperactivo, outros desconfiaram que era bipolar. Há pouco tempo, uma médica suspeitou que fosse depressão”, desabafa. Esta clínica mudou a medicação, que Samuel toma desde os seis anos, e “finalmente parece estar a dar certo”. “Anda muito melhor”, comenta.
De diagnóstico em diagnóstico, Samuel tem sido o grande desafio parental de Lurdes e do marido: tem causado uma série de problemas na escola e o cúmulo dessas situações em que “é agressivo”, como diz a mãe, colocou-o perante a justiça. “Ele vai para os tribunais e o procurador perguntou se queria desistir dele. Disse que nunca desistiria dele, ele é que tem de desistir de mim. Mas eu vou ganhar esta batalha”, garante.
Ser um exemplo “para os meninos”
A coragem que Lurdes demonstra nesta “batalha” tem sido um dos combustíveis que a fazem avançar na vida. Quando “o Juninho” entrou na sua vida, em 2018, tinha um trabalho certo no qual era apreciada profissionalmente. Fazia parte da equipa de camareiras do hotel, sentia-se realizada e estava feliz.
“Eu e o meu homem estávamos juntos havia 25 anos e casámos a 1 de Junho de 2018, no Dia Mundial da Criança. Os meus filhos mais velhos foram os nossos padrinhos de casamento. Foi tão romântico, foi tão bonito”, diz, entre a emoção genuína e o toque defensivo da ironia, por causa das diferenças de etnia, ela cigana, ele não. “No início, os outros olhavam admirados para nós. Mas o fruto proibido é sempre o mais apetecido, não é?”
Nesse ano, teve de deixar o trabalho para cuidar do filho mais novo. “Não conseguia arranjar infantário para o Juninho, mas depois lá consegui. Comecei a procurar trabalho, mas quando respondia a um anúncio, nunca era aceite”, recupera Lurdes. “Ia a um café que tinha um papel a dizer ‘precisa-se de empregada’ e diziam-me que já não precisavam, mas depois o papel continuava lá”, aponta.
Não era propriamente uma novidade para Lurdes, que desde cedo teve de conviver com o estigma de ser diferente dos outros. “Ligava para responder a anúncios e diziam-me para lá ir [às entrevistas]. Quando lá chegava, viam que era cigana e recusavam-me”, insiste. Estas recusas foram ocorrendo na procura de emprego em vários sectores, de empregada de limpeza a vagas na restauração e na indústria, área em que chegou a trabalhar há muitos anos.
“Há muito tempo, trabalhei numa grande fábrica de calçado. Um dia, faltou um aquecedor e eu fui a única chamada. Depois, o aquecedor apareceu num gabinete, mas eu vim-me embora. Fui eu que quis...”, exemplifica, sem perder tempo.
Entretanto, nunca se manteve imóvel. Além das responsabilidades parentais, foi-se qualificando com cursos de formação. Tirou um de Auxiliar Educativa, outro de Florista e um outro de Assistente de Geriatria.
Movia-se entre “negas” de vagas que, garante, só lhe eram vedadas por ser cigana e caminhos que descobria para se valorizar e encontrar o tão almejado trabalho. Andou nestes ziguezagues até ao Verão do ano passado.
“Sempre disse no hotel que, quando precisassem de mim, eu voltava. Mas quando veio a pandemia, ficaram apenas duas pessoas como camareiras. Entretanto, agora as coisas endireitaram e chamaram-me”, relata. Não se ficou por aí: “Estava a fazer o 9.º ano e, como ainda faltava cerca de um mês, acabei por fazer o resto do curso, os exames, online.”
Voltou a fazer limpezas e a arranjar quartos a 1 de Agosto de 2022, de volta à unidade com cerca de 100 quartos no centro histórico de Guimarães. “Éramos seis ciganas na equipa, mas uma saiu porque vai abrir um café e a outra foi embora porque era muito lenta”, regista, sublinhando que naquele lugar foi tratada como queria ser tratada nos outros onde lhe fecharam as portas. Como outra cidadã qualquer. E num sector em que as cargas horárias são particularmente pesadas, sem grandes descansos: horários de entrada definidos, jornadas de nove horas com uma hora para almoço, folgas alternadas e rotativas, um fim-de-semana de seis em seis semanas. Este é, aproximadamente, o caso das rotinas laborais de Lurdes.
Foto “Compensava-me mais ficar em casa do que ir trabalhar”, confessa Lurdes, fazendo contas à subida da renda de casa, em habitação social. “Gosto de trabalhar”, conta, “é importante para mim”. Paulo Pimenta
“Nós, ciganos, somos de trabalho como todos os outros”
Ainda a etnia, e um recado espontâneo — “Nós, ciganos, somos de trabalho como todos os outros” — num tom seco, indignado, acabando por virar a página rapidamente, em direcção às soluções práticas da vida do dia-a-dia, contornando uma das cavalgadas políticas na ordem do dia sobre a dignidade dos portugueses ciganos – a comunidade que, ainda há pouco, se insurgiu contra o Governo num manifesto assinado por um conjunto de associações ciganas sobre a forma de integração social e política adoptada pelo executivo.
No entanto, para Lurdes Dias, é já óbvio, neste ponto da vida, que os obstáculos não se desviam sozinhos. É preciso identificá-los, combatê-los, ultrapassá-los. Cada um por si, individual e colectivamente.
“Olhe, até lhe digo uma coisa: compensava-me mais ficar em casa do que ir trabalhar. Se calhar, até perdemos dinheiro. Mas o meu marido apoia-me, porque sabe que eu preciso de trabalhar”, começa por disparar. E vai explicando: “Nós vivemos numa habitação social e por causa do trabalho [do rendimento que passou a auferir] a nossa renda, que era de 80 euros, passou para mais de 300 euros mensais.”
“Eu gosto de trabalhar, gosto do que faço e do meu trabalho, é importante para mim”, continua Lurdes. E acaba a levantar valores que não costumam ter um valor facial no mercado de trabalho. “Apesar de tudo, trabalhar é importante. E eu não quero dar um mau exemplo aos meninos”, conclui a camareira de 53 anos, mãe de quatro “meninos”: dois maiores de idade e dois menores, os principais visados nesta declaração de princípios e modelos a seguir.
O programa Incorpora, da Fundação “la Caixa”, em colaboração com o BPI e o IEFP, tem como objectivo fomentar o emprego para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Nesta série de reportagens, o PÚBLICO apresenta um conjunto de retratos representativos dos diversos grupos-alvo da iniciativa. As reportagens são guiadas por critérios editoriais, sem qualquer relação directa com os apoios atribuídos pelo programa.