Estudo do Conselho Económico e Social estima ainda que 30 mil pessoas que jogam “raspadinhas” com regularidade têm perturbação de jogo patológico. Pede-se mais regulamentação.
Um estudo encomendado pelo Conselho Económico e Social (CES), sobre o perfil dos utilizadores de "raspadinhas" e níveis de doenças associadas a este tipo de jogo, revela que, em Portugal, “os problemas de jogo com 'raspadinhas' podem afectar 1,21% da população adulta”. Ou seja, as "raspadinhas" implicam problemas de jogo para cerca de 100 mil cidadãos, e 30 mil dessas pessoas “quase de certeza têm doença instalada, ou seja, perturbação de jogo patológico”, explica o psiquiatra e investigador da Universidade do Minho Pedro Morgado.
Foi ele quem, com o economista Luís Aguiar-Conraria, coordenou o estudo que pretende responder à pergunta que dá título ao trabalho: Quem Paga a Raspadinha? Os resultados, a que o PÚBLICO teve acesso, são apresentados nesta terça-feira, nas instalações do CES, em Lisboa, mas Pedro Morgado antecipa a resposta: “Em Portugal, as 'raspadinhas' são pagas de forma muito assimétrica. Temos as pessoas com menos instrução escolar com muito maior probabilidade de serem jogadores frequentes, [assim como aquelas] com menos rendimentos e mais vulneráveis do ponto de vista económico. As que têm maior risco de desenvolver doenças associadas ao uso de 'raspadinhas' são também pessoas com piores indicadores de saúde mental, em geral, incluindo sintomas de ansiedade, depressivos ou de stress; e também com piores hábitos no que diz respeito ao uso de substâncias”, diz.
O estudo, feito a partir de 2554 entrevistas telefónicas concluídas, dá expressão numérica a esta informação, sob a forma de probabilidades. Assim, o que nos dizem os dados compilados pela equipa da Universidade do Minho é que, por exemplo, uma pessoa com rendimentos entre os 400 e os 664 euros tem três vezes mais probabilidades de ser jogador frequente de "raspadinha" do que quem aufere mais de 1500 euros; ou que quem tem o ensino básico tem quase seis vezes mais probabilidade de ter esse mesmo comportamento do que quem tem um mestrado ou doutoramento.
Também as pessoas mais velhas, com 66 anos ou mais, apresentam o dobro da probabilidade de serem jogadores frequentes de "raspadinha", comparando com a faixa etária entre os 18 e os 36; e um operário tem 2,5 vezes mais probabilidade de recorrer a este jogo com frequência do que as pessoas que têm profissões que implicam uma formação superior. No caso do consumo de álcool, quem consome quatro ou mais copos desta bebida por dia tem quase dez vezes mais probabilidade de recorrer às "raspadinhas", diária ou semanalmente, do que quem nunca o faz.
Alerta Pedro Morgado: “É uma população particularmente vulnerável e para a qual temos todos, enquanto sociedade, de ter um olhar muito particular, no sentido de minimizar os danos que o jogo pode estar a causar.”
Sobretudo para os estimados 30 mil jogadores que, neste momento, estão a entrar nas lojas e a comprar "raspadinhas" sofrendo já de perturbação de jogo patológico, uma “doença psiquiátrica”, indica o investigador, tornando qualquer tipo de controlo muito mais complicado. “Há uma diminuição da capacidade de decidir de forma racional acerca de comportamentos relacionados com o jogo, de avaliar as consequências negativas do jogo e em que a pessoa passa a ter uma ilusão acerca daquilo que é o seu nível de controlo ou a probabilidade de ganhar. Além disso, há uma memória distorcida em relação às vezes que venceu alguma coisa e às vezes em que perdeu somas avultadíssimas, e por causa e apesar das consequências negativas, continua a jogar mais e mais e mais para tentar recuperar e reparar tudo o que foi perdido.”
Jogar doente
O valor de 30 mil jogadores de "raspadinhas" afectados por esta doença é superior ao que tinha sido identificado em estudos prévios, indica Pedro Morgado, e deixa mais um sinal de alerta aos investigadores: “Sinaliza que é um fenómeno que pode estar em crescimento” no país, diz.
Os dados da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), responsável por jogos como o Euromilhões, o Totoloto ou a "raspadinha", indicam que, em 2020, os portugueses gastaram quase 1,4 mil milhões de euros em "raspadinhas", ou seja, quatro milhões de euros por dia, cerca de 140 euros por residente num ano. Um valor que atirava as "raspadinhas" para o topo de todos os jogos da SCML, mesmo que tivesse baixado em relação aos dois anos anteriores, fruto, muito provavelmente, da pandemia e do facto de vários espaços de venda terem encerrado naquele ano.
Os valores investidos pelos portugueses neste jogo – já se sabia – são bastante mais elevados do que noutros países europeus, a começar por Espanha, e Pedro Morgado diz que há razões para isso. “A 'raspadinha' em Portugal é um problema porque é muito popular, tem um estigma muito positivo. As pessoas têm a percepção de que estão a ajudar um bem maior quando gastam o seu dinheiro na 'raspadinha', além de ter uma acessibilidade muito fácil e um custo baixo por aposta. Tudo isto faz com que o jogo possa ser mais adictivo e possa trazer problemas muito significativos”, diz.
Por isso, acredita, é preciso agir, e os investigadores têm um conjunto de recomendações nessa matéria, dirigidas ao Governo. “Do ponto de vista legislativo, as recomendações seriam que se pudesse ponderar medidas que venham a diminuir ou a tornar mais consciente a acessibilidade a este tipo de jogo, por exemplo, através da obrigatoriedade de um cartão de jogador, em que a pessoa possa auto-excluir-se e em que há maior possibilidade de se identificarem comportamentos desadaptativos e patológicos. Também devíamos ter campanhas informativas que ajudem as pessoas a ter maior literacia acerca deste jogo, porque o que vimos é que há muitas pessoas que gastam muito dinheiro em 'raspadinhas' mas que nos dizem que não jogam jogos de sorte e azar ao longo do ano. Não têm a percepção de que a 'raspadinha' é um jogo de sorte e de azar e que, na esmagadora maioria das situações, é mesmo um jogo de azar”, explica Pedro Morgado.
Proibir não
O que os autores do estudo não defendem é a proibição destes jogos. “A proibição gera situações de jogo clandestino, ilegal, que também não são positivas e têm consequências muito nefastas. Precisamos é de uma melhor regulamentação”, defende.
O estudo agora concluído é a primeira etapa de um trabalho que deve abranger mais duas fases: uma dedicada exclusivamente aos jogadores e à sua caracterização e a última que procura estudar “as alterações cerebrais que possam estar associadas aos estímulos relacionados com 'raspadinhas' nas perturbações de jogo patológico”. Pedro Morgado diz que a equipa já recebeu indicações do CES de que estão reunidas as condições financeiras para avançar com o trabalho “nos próximos meses”.
Será aí que os investigadores poderão, por exemplo, tentar encontrar respostas para uma das especificidades que encontraram nos jogadores de "raspadinhas" portugueses, em termos de características de personalidade. Os jogadores de "raspadinhas" com perturbação de jogo patológico têm “níveis de neuroticismo maiores” do que o resto da população, uma característica relacionada com “a elevada exteriorização de emoções, de elevado sofrimento associado às vivências psicológicas”, explica o psiquiatra.
E isto, diz, está “um pouco em contradição com o que é o perfil da perturbação de jogo patológico para outros jogos”. Será que o facto de haver muito mais mulheres a jogar "raspadinha" com frequência do que indicam os estudos para outros tipos de jogos pode ter influência nisto? Que outros factores devem ser considerados? “É o que vamos procurar perceber na segunda fase do estudo”, diz Pedro Morgado.
A SCML tem um site dedicado ao jogo responsável, que inclui um questionário para as pessoas perceberem se estão a jogar para lá do que é razoável e uma linha telefónica de apoio (214193721), que funciona entre as 14h e as 18h.
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