29.9.23

O peso dos telemóveis

Miguel Esteves Cardoso, opinião, in Público

Qual é a percentagem dos dados guardados na cloud que as pessoas prezam? Cinco por cento? O resto é lixo, lixo que sai caríssimo.

Estou a aprender a guardar-me para as crónicas. Já é um luxo desperdiçar as minhas indignações. Mais vale morder a língua, e depois vir para aqui escrever aquilo que teria dito, caso achasse que alguém me quisesse ouvir.

Para mim era novidade servir de exemplo de dissolução para benefício das gerações mais jovens: um pai que poderia ser meu filho, a usar-me para mostrar ao filho dele aquilo que nunca se deve ser.


Segurando o telemóvel disse: “O pai tem tudo aqui. Já este amigo do pai tem a casa cheia de livros, papeladas e aparelhos de toda a espécie... porque era assim que se fazia antigamente. Não havia noção de desperdício ou do planeta.”


Isto é o que eu diria à criança: “Para o teu papá andar com tudo no telemóvel, é preciso haver grandes armazéns-frigoríficos, sempre a gastar electricidade, onde se guardam todas as coisas que ninguém tem paciência para deitar fora.”


A “cloud” é a palavra mais mentirosa que já existiu. A nuvem são estádios de futebol cheios de aparelhos a gerar tanto calor que têm de ser intensamente refrigerados. Chamam “servidores” a estes aparelhos, que não são mais do que gigantescos discos externos.


Qual é a percentagem destes dados que as próprias pessoas prezam? Cinco por cento? O resto é lixo, lixo que sai caríssimo, porque tem de ser electricamente mantido com o mesmo cuidado com que se guardam as obras-primas da humanidade.

Na verdade, o que se guarda é a nossa preguiça de guardar tudo só porque não temos pachorra de seleccionar o que vale a pena guardar. Guardamos porque achamos que não nos custa nada.Mas custa – e muito. Nós é que não sabemos. Para mim, por exemplo, foi um choque saber que a famosa cloud Apple são vastos territórios de aparelhos que pertencem à Amazon e à Google.

O “digital” é outra palavra mentirosa.

Quando acaba a bateria do telemóvel, onde é que ela vai buscar energia para mais um dia de mãos leves, segurando a pontinha de um iceberg de refrigeração, incúria e desperdício?

O autor é colunista do PÚBLICO

[artigo disponível na íntegra apenas para assinantes]