Opinião de Tiago Correia. Desde 2015, os programas de Governo do PS são claros quanto ao reforço do SNS. Os sinais mais visíveis são o aumento do orçamento em 56% e 30.000 novos profissionais. A coerência política nos três mandatos de António Costa como primeiro-ministro não tem forma de ser negada por estes números.
O Governo aprovou várias medidas que diz serem o culminar de um caminho de reformas do SNS. Isto, sem que tenha sido possível o acordo com os médicos e com dúvidas lançadas sobre o modelo de organização dos cuidados. Parece que se fecha o ciclo do desenho das políticas e que se inicia o da implementação. O governo terá dois anos para mostrar que tem razão. Mas este ciclo termina com vários paradoxos que trazem incerteza ao período que se segue.
O paradoxo da coerência inconsistente
Desde 2015, os programas de Governo do PS são claros quanto ao reforço do SNS. Os sinais mais visíveis são o aumento do orçamento em 56% e 30.000 novos profissionais. A coerência política nos três mandatos de António Costa como primeiro-ministro não tem forma de ser negada por estes números.
Só que não é fácil encontrar consistência na ação dos Ministros da Saúde nos últimos 8 anos. Apenas os próprios saberão se isso resulta das alianças e oposições que enfrentaram ou da confiança que mereceram do primeiro-ministro. Basta estar atento a declarações públicas ou escolhas de pessoas para lugares de confiança.
Esta inconsistência é particularmente séria com as 39 Unidades Locais de Saúde que vão surgir em 2024. O anúncio veio com pompa e circunstância, mas isso não estava previsto no programa de Governo.
Dentro da coerência de reforçar o SNS que António Costa tem repetido à exaustão, não são claras as consequências destas inconsistências de rumo político. Tenho dúvidas sobre a avaliação que os eleitores – incluindo as estruturas locais do PS – fazem de sucessivas mudanças que implicam mais dinheiro e tardam em produzir resultados.
O paradoxo de quem manda
Desde que o SNS ganhou um CEO deixou de ser claro quem manda em quê. Não é claro porque a Direção Executiva tem funcionado sem estatutos, o que impossibilita saber o enquadramento legal de processos e procedimentos, a articulação com as outras estruturas do SNS e porque a divisão “técnica” e “política” com o Ministro da Saúde não tem existido.
Um exemplo claro volta a ser o modelo das Unidades Locais de Saúde. Alguém percebe se é uma decisão política ou técnica? Partiu do Ministro a quem pediu ao CEO para executar ou foi o inverso? As declarações de ambos deixam no ar a ideia de que a Direção Executiva do SNS tem tido um papel político muito mais ativo do que a lei previu.
O paradoxo da boa governação com maus princípios
Não é obstinação falar na Direção Executiva do SNS. Mas a sua missão é tão importante que causa estranheza a forma como tem funcionado.
O organismo que procura tornar o SNS mais transparente, próximo dos cidadãos e o local ideal para trabalhar tem sido acusado de se comportar em sentido inverso. Ainda não é possível julgar a justiça das críticas que têm sido feitas, mas tal não impede que se sinalize que a estrutura criada para resolver problemas do passado é acusada de incorrer em vícios semelhantes: escolha a dedo de pessoas para lugares sem critérios transparentes, cultura de medo, falta de diálogo, decisões tomadas sem evidência pública, centralismo excessivo, falta de instrumentos de participação, só para nomear alguns exemplos. Tudo isto está em contraciclo com os melhores princípios da governação em saúde.
O paradoxo das boas condições que não convencem
O acordo com os médicos sobre a remuneração e a dedicação plena era importante por vários motivos: foi o embate que mais desgastou e fez cair Marta Temido; Pizarro, o Ministro-médico, veio com pergaminhos de negociador e entendedor da causa profissional; e porque dá um sinal aos outros profissionais que aguardam pela negociação das suas carreiras.
Causa surpresa ouvir o Ministro da Saúde e os sindicatos sobre a proposta que o Governo avançará unilateralmente para os médicos, pois parece que falam de realidades paralelas.
A grande discórdia parece ser a ausência do aumento salarial significativo a todos os médicos, independentemente de aumentos ligados ao desempenho, ao trabalho suplementar ou à dedicação plena.
O argumento dos sindicatos tem fundamento, mas o Governo não deu resposta clara: as quebras salariais de médicos – e enfermeiros – não tiveram reposição ao ritmo da restante administração pública. O Governo respondeu com aumentos salariais sim, mas com a contrapartida de mais trabalho.
Sabendo-se que o trabalho em saúde atravessa uma crise a nível global, porque estas profissões estão a perder interesse face às exigências e responsabilidades por comparação a outros setores de atividade altamente qualificados, os governos devem estar atentos para garantir que dentro de algumas décadas persiste uma força de trabalho capaz de manter os sistemas de saúde.
Mais salário em troca de menos tempo de descanso, lazer, conciliação com a família e formação pode agravar a indisponibilidade dos profissionais para ficar no SNS e no país.