Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Mulher que perdeu uma perna num acidente aos 34 anos cria Associação Nacional dos Amputados, destinada a "tirar as pessoas amputadas de casa, mudar mentalidades, criar aceitação".
Já consegue falar sobre o assunto sem pestanejar. Passava pouco das 8 da manhã. O carro abafou em Ermesinde, na A4. “Saí. Dirigi-me à traseira para colocar o triângulo. Fui atropelada. Estive 18 dias em coma. Quando acordei, não tinha uma perna.”
Ninguém se sentou ao lado dela para lhe dizer, com voz delicada, olhar empático, que a perna já não estava lá. Havia mais três pessoas doentes deitadas naquele quarto. Paula Leite viu uma delas levantar-se, caminhar até ao lavatório, lavar os dentes. Tentou fazer o mesmo e não foi capaz. “Tudo o que estava a minha volta foi parar ao chão”, recorda. O copo com água, a jarra com rosas, o iogurte que a mãe trouxera. “Não foi fácil. Como é que hei-de-dizer isto? Numa manhã, era perfeita. Noutra, faltava-me uma perna. Eu continuo perfeita, mas naquela altura não percebia isso.”
É um instante que se eterniza. António Ferreira tem 36 anos, perdeu os dedos da mão direita aos 11 e recorda aquele momento como se tivesse ocorrido há um mês ou há uma semana. “Lembro-me de acordar e de gritar. Tinha uma bola na mão. Percebi logo que tinha ficado sem dedos. Pensei que o mundo tinha acabado, mas adormeci e no dia a seguir o mundo estava lá.”
Não é que estivessem sozinhos naquele susto. Tinham familiares e amigos. Só que nem uns nem outros tinham vivido aquilo na primeira pessoa. Impossível saber com rigor o que estavam a sentir. E não lhes podiam servir de espelho, embora todos eles tivessem muitas outras serventias. Parece-lhes que ajudaria ter tido alguém que já tivesse passado por aquilo a dizer-lhes que o mundo não acabara, que a vida recomeçaria, que uma pessoa não é menos pessoa porque perdeu uma mão ou um braço ou um pé ou uma perna ou os dois braços ou as duas pernas. E criaram a Associação Nacional dos Amputados. Ela é presidente, ele é secretário.
“Há uma necessidade muito grande de apoio moral nos hospitais antes das pessoas virem cá para fora”, considera Paula. “Senti muito essa falta.” Por isso quer tanto criar voluntariado específico para pessoas recém-amputadas – de repente, na sequência de um acidente, ou com hora marcada, na sequência de uma doença.
Não tardou a perceber que existia desde 2012 a Associação Portuguesa de Amputados (www.andamus.pt), mas queria criar algo de raiz. A Associação Nacional dos Amputados foi formalizada no final do ano passado em Vila Nova de Gaia. Está na fase de divulgação e de angariação de sócios.
Para já, a associação reúne 37 pessoas, a maior parte dos quais familiares e amigas de pessoas amputadas. Delineia planos que passam pelo voluntariado especializado e por tertúlias e outros eventos que ajudem a “tirar as pessoas amputadas de casa, mudar mentalidades, criar aceitação”.
“O mundo é uma selva”
Todo o trabalho que possa ser feito lhes parece precioso. “As pessoas perdem um bocado o respeito das outras quando lhes falta alguma coisa”, nota António. “Depois do acidente, os meus amigos começaram a gozar comigo. Tive de lhes mostrar que tinha perdido alguma coisa mas continuava ali, continuava a ser eu. Tive de ser mauzinho às vezes...
Nem quer pensar como seria hoje a sua vida, se não fosse a boa vontade da irmã e do cunhado. Teve vários trabalhos, sempre temporários. Não sabe quanto desta precariedade resulta da baixa escolaridade, do estado do mercado de trabalho, e quanto resulta de discriminação. “Acaba por ser desgastante”, diz. “A pessoa vai a uma entrevista de emprego com a mão no bolso e está tudo bem. Quando se levanta e tira a mão do bolso, parece que acaba tudo...”
Era só um miúdo quando perdeu os dedos. “Tinha um fogueteiro perto de casa. Aquilo estava aberto. Tínhamos a mania a de ir lá buscar umas bombitas para estourar. Naquele dia, apanhámos umas maiorzinhas e eu tive azar.”
Paula estava noutra fase da vida quando o carro a arrastou na A4. Tinha 34 anos. Era casada. Tinha um filho adolescente. Trabalhara numa fábrica têxtil perto de 20 anos. A fábrica fechara, como acontecera a tantas outras, e ela estava a tratar de se reciclar. Fizera um curso de costura industrial. Naquele dia, antes de ir para o estágio, numa loja de arranjos de costura, no Porto, tivera de ir à Maia, ao Instituto de Informação, Apoio e Formação Empresarial, tratar de um assunto.
Esteve quatro meses no hospital. “Fui operada à cabeça, porque tive traumatismo craniano. E aos intestinos, porque apanhei uma bactéria hospitalar que os perfurou em dois sítios.” O joelho ficou com dois centímetros de articulação. Para aproveitá-lo, os médicos fizeram-lhe vários enxertos. “Os enxertos não colavam. Tive de fazer quatro cirurgias ao coto de