5.9.23

A grande reforma do SNS?

Tiago Correia, opinião, in SIC

Opinião de Tiago Correia. O país ficou a saber duma grande reforma que o SNS irá passar em 2024: a expansão das Unidades Locais de Saúde. Mas o passado mostra que uma reforma não acontece por antecipação nem por desejo do mentor. Não está em causa a discordância com o modelo, mas sinalizar que boas ideias e boas intenções não chegam para criar boas políticas. Multiplicam-se os problemas quanto à forma como as ULS estão a sair do papel.


O país ficou a saber que o SNS irá passar por uma profunda mudança em 2024: a criação de 31 novas Unidades Locais de Saúde (ULS), a somar à alteração das 8 já existentes. O cidadão não notará diferenças, dado que estão em causa alterações de orgânica e gestão: quem decide o quê e como o financiamento dos cuidados é feito. Não se conhecem pormenores, mas sabe-se que o SNS terá um ano para se adaptar a extinções de entidades e a transferências de responsabilidades.

O anúncio da mudança veio com estrondo, porque o Diretor Executivo – Fernando Araújo – prometeu tratar-se da grande reforma do SNS nos seus 44 anos. Se há algo que o passado mostra é que uma reforma não acontece por antecipação nem por desejo do mentor. Foi o caso da reforma hospitalar, da reforma dos cuidados de saúde primários ou da revisão da Lei de Bases da Saúde. Tudo isto foi anunciado com pompa e circunstância, na lógica “agora é que é”. Ainda assim, nada evitou que se chegasse a 2023 e uma nova grande reforma continue a ser necessária.

Que não haja dúvida: não está em causa a discordância com o modelo das ULS nem com Fernando Araújo. Se há algo que se percebe das suas decisões é que é bem-intencionado, está motivado e não tem receio.

Mas falta qualquer coisa e não é claro se o próprio ou o Ministro da Saúde estão cientes disso: boas ideias e boas intenções não chegam para produzir boas políticas. Para que isso aconteça é necessário assegurar a correta implementação e é aqui que os problemas das ULS se multiplicam.

Há o problema do timing, sabendo-se que tudo está a ser feito à pressa nos hospitais e centros de saúde para garantir que a mudança ocorre logo a partir de janeiro. Há o problema da intensidade, dada a pretensão de que tudo isto aconteça no espaço de um ano. Há o problema da falta de evidência, dado que as ULS existentes não deram prova inequívoca de ganhos de gestão, nem se conhecem estudos-piloto sobre o modelo “2.0” que a Direção Executiva decidiu criar.

Em resumo, o SNS será confrontado com uma transformação feita em contrarrelógio e sem evidência. Se tudo vier a acontecer como foi dito – tenho dúvidas –, uma possível boa ideia corre sérios riscos de fracassar por deficiências no modo como sai do papel. Do ponto em que me encontro, parece-me um claro sinal de que a Direção Executiva vive um misto de deslumbramento e de necessidade de fazer prova de vida.

Ora, a necessidade de prova de vida mostra o maior problema de todos: falta de legitimidade. Sem os seus estatutos aprovados, não há mandato jurídico para que a Direção Executiva do SNS imponha qualquer mudança sobre profissionais e serviços de saúde. Isso ficou claro na contenda vivida no Hospital Santa Maria, em que o braço de ferro com os obstetras apenas foi resolvido após um despacho ministerial.

É injustificado que a Direção Executiva exista sem estatutos e é injustificado que os seus membros aceitem trabalhar neste contexto. Não basta dizer que os estatutos vêm a caminho. Do mesmo modo que não se constrói uma casa a partir do telhado, não se tomam decisões políticas como aquelas que estão aqui em causa sem que primeiro se saiba quem manda em quem, com que mecanismos jurídicos as decisões são tomadas, quem monitoriza a qualidade das decisões ou como é feita a responsabilização pelos resultados.

Na ausência de enquadramento jurídico, é justo que Ordens, sindicatos e associações médicas venham criticar as ULS. Não se sabe como é que a decisão foi tomada, quem devia ter sido ouvido, quem assegurou o contraditório e, sobretudo, se tudo isto aconteceu tal como era suposto. Que ninguém se queixe, depois, de forças de bloqueio no terreno.