Cerca de 200 mil portugueses sofrem de demência, um estado de deterioração progressiva da memória e de outras funções cognitivas, que pode ser provocado por várias doenças, como o Alzheimer. No novo episódio do podcast “Que Voz é Esta?” falamos das causas e dos sintomas da demência, da falta de respostas a nível dos tratamentos e do desgaste emocional que representa para os cuidadores. Oiça as explicações do neurologista Ricardo Taipa e o testemunho de Paula Rodrigues, que há cinco anos cuida diariamente do marido
Paula esteve “muito tempo em negação”. Notava que o marido andava distraído e que, com alguma frequência, se esquecia de várias coisas, até do capacete da mota, o que nunca antes tinha acontecido, mas convencia-se de que estava apenas cansado do trabalho. Até ao dia em que percebeu que ele não se lembrava quem era o próprio filho. Por mais que não quisesse ver, era impossível continuar a ignorar.
“A partir daí, tive de aceitar que era grave. Recordo-me que o grande sentimento que tive foi ficar muito assustada”, lembra agora, cinco anos depois do diagnóstico de demência.
Sabia que não havia cura e que a doença iria diminui-lo cada vez mais, como se o marido tivesse entrado “numa escada que só desce”. Apesar do medo, não hesitou em deixar o trabalho e abdicar de tudo o resto para passar a cuidar dele.
"Tinha a certeza que não queria interná-lo. Queria estar sempre ao seu lado. Mas posso dizer que não passaram 5 anos, passaram 50. Foi muito forte, muito intenso”, conta Paula Rodrigues, no novo episódio do “Que Voz é Esta?”, o podcast do Expresso dedicado à saúde mental.
Durante muito tempo, Paula fez tudo para dar ao marido, dono de uma loja de instrumentos musicais, “uma ilusão” de normalidade, mantendo a rotina a que ele estava habituado. Todos os dias ia com ele para a loja, que já não estava aberta ao público, fingindo que nada tinha mudado.
“Ainda tentei que ele conduzisse o máximo possível porque era uma coisa que lhe dava muito prazer, mas tornou-se inseguro. O mais complicado foi quando lhe disse que não podia conduzir. Não lidou bem com isso. Tudo o que eu lhe dizia que não podia fazer era impensável para ele”, conta. Sabendo que, se insistisse, o marido poderia tornar-se agressivo, Paula passou a disfarçar. Inventava desculpas umas atrás das outras para que ele não pudesse sair de carro ou de mota. “Nós, cuidadores das demências, somos mestres porque estamos sempre a inventar”, diz.
Mas o marido não desistia. Sem se aperceber que estava doente, teimava em sair sozinho de casa, de bicicleta ou a pé, rejeitando a companhia dela. Paula “parecia uma inspetora a segui-lo” para onde quer que fosse, escondendo-se para que não a visse e aparecendo subitamente sempre que ele estava na iminência de fazer algo perigoso.
Para conseguir vigiá-lo em permanência, não tinha um segundo para si. Sentia-se totalmente esgotada, física e mentalmente. “Quem escolhe cuidar não pode sentir culpa por todas as emoções por que vai passar. São emoções e sentimentos muito fortes e muito confusos de zanga, de raiva, de tristeza e cansaço”, conta.
A CULPA DOS CUIDADORES NO MOMENTO DA SEPARAÇÃO
Paula estava no limite das suas forças quando, há um ano, depois de vários pedidos de ajuda negados por muitas instituições, encontrou um apoio no centro de dia da Casa de Saúde da Idanha (Belas, Sintra), onde desde então o marido passa oito horas por dia. “A enfermeira chefe foi-nos receber e disse: ‘Agora vá cuidar de si. Nós cuidamos do seu marido’. Isso fez toda a diferença”, recorda.
Ricardo Taipa, neurologista do centro Hospitalar de Santo António, no Porto, explica que muitas famílias “sentem culpabilidade pelo abandono” e resistem a institucionalizar a pessoa com demência, mas muitas vezes essa é a melhor opção, “porque, a determinada altura, é humanamente impossível 24 horas por dia dar os melhores cuidados a quem se ama”.
“Os cuidados com a demência custam mais do que o cancro ou as doenças cardíacas e mais de 50% desse gasto é com os cuidadores. São pessoas que abdicam da sua profissão e que dedicam várias horas a cuidar, com enorme desgaste emocional. É uma doença que afeta de forma transversal uma família e que a pode deixar mesmo em dificuldades”, frisa.
Neste episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, o neurologista fala dos vários sintomas da demência, incluindo as alterações de comportamento e personalidade, e do que é possível fazer a nível da prevenção, nomeadamente quanto à importância de manter uma vida socialmente ativa, que “enriquece a rede neuronal e protege o cérebro”.
“PONTO DE VIRAGEM” NOS TRATAMENTOS
No que diz respeito aos tratamentos, Ricardo Taipa, que é coordenador do Banco Português de Cérebros, organismo que recolhe tecido cerebral para investigação com o objetivo de compreender as doenças neurodegenerativas e desenvolver novas respostas terapêuticas, explica que, neste momento, a medicação existente “não é muito eficaz”, não existindo ainda fármacos que permitam atrasar ou parar o processo de demência.
Ainda assim, diz, “estamos num ponto de viragem”, nomeadamente no que diz respeito ao tratamento do Alzheimer. As perspetivas no que diz respeito à descoberta de uma cura ou à possibilidade de rastreios em idades cada vez mais precoces foram outras das questões abordadas neste episódio.