20.9.23

Eu podia ser aquele pai que esqueceu a filha no carro

Henrique Raposo, opinião, in Expresso


Em relação aos nossos pais, nós temos mais conhecimento pedagógico e mais sensibilidade para as crianças. Mas, paradoxalmente, temos menos tempo para aplicar essa sensibilidade, porque andamos numa permanente lufa-lufa que não existia na vida dos nossos pais, que era muito mais pausada. Porquê? O instrumento que nos dá o conhecimento - net, telemóvel, computador - também é a máquina que nos tira o tempo, ou melhor, que acelera o tempo para uma velocidade desumana


No passado, as reações emocionais eram reações emocionais, emergiam e submergiam; passados uns minutos ou segundos as pessoas pensavam um pouco e viam a situação com outra sensatez. Com as redes sociais, as pessoas reagem como sempre, mas deixam registados aqueles primeiros segundos e – como fica escrito – parece que sentem a obrigação de manter aquela posição quente mesmo quando as partes mais elevadas e racionais do cérebro entram no jogo. É por isso que as boas discussões, mesmo as mais amigáveis, são cada vez mais raras.


Perante episódios como aquela tragédia da criança esquecida no carro pelo pai, surgem logo estas vagas emocionais. Uns dizem que este caso – e outros raríssimos – mostram a decadência do tempo, demonstram a superioridade do passado. É a falácia reacionária que compara uma imperfeição do presente com uma alegada perfeição do passado. Outros começam a fazer o auto-de-fé, a prática mais comum da era da internet. Não preciso ir à net para saber como é: “Este homem não vale nada”; “este gajo é um criminoso e devia ser preso”; “veem! não vos digo que os homens não prestam para isto”; “isto comigo nunca acontecia”, “é preciso ser muito irresponsável”. Ou seja, demasiada gente assume que isto jamais aconteceria consigo. Além de injusta, esta ideia é perigosa, porque este tipo de tragédia pode acontecer a qualquer um que tenha filhos e que esteja mais ou menos sozinho numa cidade como as nossas. Eu digo-vos: distraído como sou, isto poderia ter acontecido comigo.

Durante quatro anos não dormi uma noite seguida, tínhamos duas filhas, ambas as famílias de apoio estavam longe, estávamos sozinhos. Se eu tivesse um emprego que me tirasse de casa e se tivesse de andar de carro com elas, pois garanto-vos que algo parecido poderia ter acontecido, porque a cabeça cansada entra em modo automático e começa a pensar em milhares de outras coisas, assumindo que aquela tarefa – deixá-las na creche – já está feita. Como dizia ontem a Inês Lopes Gonçalves na Renascença, a questão não é "porque é que aquele homem deixou a filha no carro?”, mas sim: “porque é que todos nós andamos mais cansados e apressados como como pais, como profissionais, como pessoas do que os nossos pais há 30 ou 40 anos?”. A resposta óbvia é a tecnologia, que nos escraviza. Em relação aos nossos pais, nós temos mais conhecimento pedagógico e mais sensibilidade para as crianças. Mas, paradoxalmente, temos menos tempo para aplicar essa sensibilidade, porque andamos numa permanente lufa-lufa que não existia na vida dos nossos pais, que era muito mais pausada. Porquê? O instrumento que nos dá o conhecimento - net, telemóvel, computador - também é a máquina que nos tira o tempo, ou melhor, que acelera o tempo para uma velocidade desumana.

Em vez de usarmos a tecnologia para ficarmos com mais tempo livre e para pensarmos melhor, andamos numa correria porque passámos a acompanhar o ritmo desumano da máquina. Nós andamos a servir a máquina, e não o inverso. Naquele dia, aquele pai já sabia que tinha uma pilha de mails à sua espera que exigem respostas imediatas, mais relatórios e mais isto e aquilo que é exigido por pessoas que estão sempre com pressa. A verdade é que a internet, devido à sua velocidade, tornou-nos mais apressados e intolerantes com os outros – demorar um dia a responder a um mail é quase uma ofensa -, não tem de ser assim.